O que tem o MiraDouro que o torna tão especial? Para começar, um nome perfeito, que casa a sua função de mirante sob carris com o nome do curso de água que diariamente sobe e desce. Numa confirmação do lugar comum, aqui o destino é quase sempre menos importante do que a viagem.
O incrível quadro natural do vale do rio Douro, a sucessão de antigas estações ferroviárias e as cores quentes das carruagens com ar vintage resultam numa combinação particularmente aliciante para quem gosta de fotografia e se interessa pelos caminhos-de-ferro. Não é de estranhar, portanto, que este vaivém de outra época se tenha tornado, aos poucos, uma atração de direito próprio, com trainspotters (aficionados da via-férrea) a virem de longe e de perto para o verem riscar de vermelho, amarelo e branco o quadro já carregado de azuis e verdes da região vinhateira.
No meu caso, o plano de passar umas férias a fotografar o colorido comboio começou a germinar depois de assistir a um invulgar documentário sobre a linha ferroviária que percorre. Ver aquele território assim, pela perspetiva de uma locomotiva, despertou uma nostalgia algo prematura (para quem a mais recente visita foi há pouco mais de 2 anos) em relação aos cenários contidos neste trajeto de 3h30. Estava decidido a regressar e, desta vez, a não limitar-me a olhar de dentro para fora: queria ver e registar como a paisagem muda com o MiraDouro.
Numa linha com 160 quilómetros, por onde começar? Há um ano, a propósito da popularidade da oferta da CP entre os adeptos de fotografia, fiz um pequeno levantamento de alguns dos pontos mais cénicos do seu percurso, que acabei por usar como roteiro na minha "missão" (aliás, algumas das imagens abaixo são, declaradamente, inspiradas nas que reuni nessa galeria). Ainda assim, quis diferenciá-las de algum modo. Como? Tornando a minha vida um pouco mais complicada, assumindo o compromisso de usar apenas o comboio como meio de transporte ao longo deste projeto.
1. O primeiro fracasso
A primeira fotografia que tentei fazer ao comboio clássico foi à sua travessia do Viaduto da Pala, em Ribadouro, uma das estruturas ferroviárias mais icónicas da Linha do Douro. Aos 145 anos de idade continua a surpreender quem por ela passa e é brindado novamente pela vista do rio, uma hora depois da saída do Porto. Só não contava com a chuva, que acabou por desencorajar-me de caminhar alguns quilómetros pela berma de uma estrada nacional para chegar ao ponto com o melhor enquadramento possível.
Mesmo assim, consegui surpreender, com a ajuda de uma teleobjetiva, um serviço InterRegional a passar o viaduto, a partir de Porto Antigo, na margem oposta. Infelizmente, a única parte imediatamente reconhecível da composição era mesmo a sua locomotiva a diesel, pintada habitualmente de laranja. Foi a primeira lição da semana: nem todos os comboios são iguais. Os vários serviços regionais e inter-regionais que ligam diariamente o Porto ao Pocinho são assegurados por veículos diferentes e mesmo o MiraDouro pode incluir material circulante de vários fabricantes, das cinzentas carruagens Sorefame construídas na Amadora nos anos 70 às mais coloridas concebidas pela Schindler na década 50.
A desilusão não é só sentida por quem vê de fora. As contrastantes experiências a bordo dão um fascinante caso de estudo sobre o que perdemos como passageiros ao longo da modernização da frota da CP. Os aconchegantes e espaçosos assentos de origem suíça, por exemplo, não ficam a dever nada à primeira classe do Alfa Pendular e arrumam a um canto o interior das automotoras espanholas da série 592 que asseguram os serviços regionais, a todos os níveis pior: mais desconfortável, mais poluído (com um cheiro a diesel persistente) e barulhento. Não é só clichê turístico, portanto, dizer que o MiraDouro é uma viagem no tempo que, apesar da sua recente reedição (entrou ao serviço em 2017), já faz parte do imaginário, e paleta de cores, do Douro.
Até quando? A rentabilidade do serviço (que já justificou o seu breve cancelamento uma vez) e questões ligadas à sua pegada ambiental (que irão ganhar novo peso com a iminente eletrificação da Linha do Douro até à Régua) podem vir a ditar mudanças na forma como é operado.
2. Uma corrente de vermelho em Godim
A segunda tentativa também não correu exatamente como esperava, mas acabou por resultar numa fotografia melhor. O objetivo era fotografar o MiraDouro à saída do túnel da Régua. Mais uma vez, a minha falta de planeamento deixou-me, literalmente, a ver passar comboios. Estava a poucos metros da escadaria que me permitiria ficar ao mesmo nível da linha quando avisto, pelo canto do olho, uma corrente de vermelho em movimento. Era a segunda lição desta viagem a passar por mim: é crucial estudar os horários da CP. Com cerca de quatro serviços ferroviários diários em cada direção, não havia grande margem de erro (na minha experiência destes dias, os atrasos raramente passaram dos 10 minutos).
3. Close-up em Caldas de Moledo
Era uma das fotografias que me parecia mais fácil de replicar, dada a proximidade da Régua, mas acabou por levar uma manhã inteira. A pior parte foi mesmo a caminhada até ao local pretendido pela berma da estrada nacional 108, tão estreita que por vezes era inexistente, com automóveis a circularem bem acima da velocidade recomendada.
O alívio de chegar a salvo deu lugar à frustração de descobrir que, às primeiras horas de manhã, o sol ainda não iluminava totalmente a encosta por onde passaria o meu alvo fotográfico do dia. Como tinha 2 horas de espera pela frente, até à próxima oportunidade, aproveitei para visitar Caldas de Moledo, um antigo parque termal instalado à beira do Douro que, apesar de parecer votado ao abandono, ainda justifica um passeio pela sua incrível alameda de plátanos.
De volta ao Caminho da Pala, valeu a pena a espera pelo segundo MiraDouro da manhã. Sem grande mérito meu, é um daqueles enquadramentos que tem tudo: o ponto de fuga criado pelo enorme muro de contenção, a sensação de velocidade, um close-up interessante da locomotiva, o rio a insinuar-se do lado esquerdo e o verde das vinhas em redor a assinalar a entrada no Alto Douro vinhateiro.
4. Nas margens do Corgo
Peso da Régua, o maior centro urbano do Alto Douro, foi a minha "base" durante esta semana a perseguir o seu mais viajado embaixador. Como tal, era obrigatório registar a sua passagem pela ponte ferroviária do rio Corgo, duplamente significativa para quem se interessa pela história dos caminhos-de-ferro nacionais: por ali já passaram comboios com destino a Chaves, na antiga Linha do Corgo.
Não sabia bem o que ia encontrar ao fundo do passeio ribeirinho da Régua (um dos mais encantadores do país), por isso soube a recompensa dar com esta vista da ponte a partir da foz do Corgo. Depois de uma espera de meia-hora, enquanto afundava lentamente os pés nas lamas da margem, lá consegui fazer uma das minhas melhores (e mais originais) fotografias destas férias.
Vale a pena abrir aqui um parêntesis e destacar mais dois pontos altos da minha estadia na capital do vinho do Porto: duas das sobremesas mais deliciosas que já tive a sorte de pedir num restaurante. A primeira foi a mousse de bolo de bolacha do Manel da Aninhas, uma casa de comida portuguesa situada junto à estação — mesmo que não sejam fãs de bolo de bolacha, vão por mim, é algo que devem provar. A segunda foi o crème brûlée do Aneto & Table, um dos mais irrepreensíveis e saborosos que já experimentei.
Mais uma oportunidade perdida na Ferradosa
O Cachão da Valeira oferece um dos cenários mais impactantes para quem serpenteia o Douro sob carris. Trata-se de uma garganta rochosa de dimensões monumentais na qual irrompemos através de um túnel, reforçando a sensação de termos transposto um limiar da Natureza ("um excesso da Natureza", lembrando as palavras de Miguel Torga), onde a nossa presença é apenas tolerada de passagem e na ponta dos pés (isto é, a uns prudentes 30km/h).
É um dos locais mais inacessíveis da linha ferroviária e, talvez por isso, um dos mais irresistíveis aos olhares curiosos, que só com a ajuda de drones ou de grandes teleobjetivas são capazes de furar a clausura granítica deste lugar. O mais próximo que consegui chegar foi a partir da outra margem, no Parque da Ferradosa, situado frente à ponte com o mesmo nome, e já depois da curvatura do rio. O problema? O comboio nunca chegou a aparecer durante a janela de tempo que tinha para o fotografar a partir dali. A minha tendência para fazer tudo em cima do joelho, e não estudar como deve ser as tabelas horárias, resultava em mais uma oportunidade perdida.
5. O postal primaveril da ponte da Murça
A ponte ferroviária da Murça faz lembrar, a uma escala mais reduzida, o Viaduto da Pala. A principal diferença é que neste ponto da linha, já no concelho de Vila Nova de Foz Côa, o comboio circula na margem esquerda do rio, abrindo novas oportunidades para o fotografar rodeado de água — era o enquadramento que mais ansiava por levar comigo para casa, ainda que para isso acontecer tivesse de preparar uma marmita, viajar 1h da Régua ao apeadeiro mais próximo (Freixo de Numão-Mós do Douro) e depois caminhar 1km pela berma de uma estrada (felizmente, pouco usada) até um olival com vista para a ponte.
Em abril, esta vista-postal tem um aliciante extra: a primavera e a forma como pinta a paisagem com pequenos apontamentos de vermelho e amarelo. Acrescente-se a isto uma carruagem do Comboio Presidencial (outra das ofertas turísticas da CP na região) e a locomotiva da série 1400 no seu esquema de cores original (azul e branco) e está o quadro completo. Pode ficar melhor do que isto? Nelso Silva, um trainspotter ativo no Flickr, conseguiu captar o mesmo cenário em 2019 com amendoeiras em flor.
Gostava de ter passado mais tempo ali, mas a reduzida frequência de transportes impunha, mais uma vez, escolhas difíceis. Por exemplo, podia ter optado por almoçar num dos dois restaurantes que ficam muito próximos da ponte da Murça (um luxo inesperado para uma zona tão esparsamente habitada), mas isso implicava perder o comboio das 13h08 e ter de esperar pelas 17h, num apeadeiro isolado, para regressar a Peso da Régua no último serviço do dia com origem no Pocinho.
Uma última nota sobre a importância de deixarmos os sítios que visitamos como os encontrámos (ou melhor). Apesar da sua localização algo remota, o mirante informal já parece ser algo frequentado, a avaliar pela quantidade de lixo que encontrei (e removi) entre as oliveiras: garrafas de água, caixas de conservas e latas de refrigerantes.
6. A despedida no Pinhão
A minha "missão" parecia completa, com algumas fotografias mais ou menos bem sucedidas tiradas ao elegante comboio em cinco pontos diferentes do seu percurso. Só restava uma última paragem no Pinhão para almoço, numa das maiores surpresas gastronómicas desta viagem, o The Bridge 1870 (um moderno restaurante com vista para a ponte mais antiga da vila e uma cozinha esmerada).
Tirava algumas fotografias à partida da composição que ali me trouxera quando reparei numa mulher na plataforma a acompanhar o andamento das carruagens. Mesmo sem perceber imediatamente o que se passava, tratei automaticamente de a enquadrar. Só mais tarde, de volta a casa e sentado frente ao meu computador, é que percebi que tinha registado uma despedida a partir do cais. Depois de mais de 300 disparos ao longo de 6 dias em torno de máquinas e infraestruturas, foi bom ser relembrado do gozo que é fotografar pessoas, e da grande expressividade dos gestos mais pequenos.
Por fim, não sei se já me posso considerar um trainspotter, sobretudo quando o meu fascínio nesta área está focado num único sujeito ferroviário, mas gostei do desafio e dos lugares que este projeto me levou a descobrir. Acima de tudo, a fotografia parece ser um bom meio de participar na estima coletiva, de ferroviários e passageiros, pelo mais incansável companheiro do Douro. Teria ficado mais um mês, se pudesse, para visitar todos os locais por onde passa, em diferentes alturas do dia, e experimentar o pôr-do-sol no rio enquadrado pelas janelas panorâmicas. Um desejo que revela uma certeza: falta fazer muitas viagens a bordo deste comboio.
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