Já viajei na Linha do Douro algumas vezes (de um extremo ao outro, apenas em duas ocasiões) e, como muitos outros passageiros, voltei a casa enfeitiçado pela forma como, a partir do Douro superior, a linha ferroviária serpenteia o rio e permite apreciar uma paisagem que foi feita a uma escala diferente da nossa.
A minha viagem a bordo do MiraDouro, o comboio turístico da CP que atravessa esta região ao longo do ano, deixou saudades que encontraram um surpreendente escape numa recente produção audiovisual da RTP que pode ser vista gratuitamente na sua plataforma de streaming. O título (“Linha do Douro - Um Património Sobre Carris”) faz pensar num documentário tradicional sobre a história da infraestrutura ferroviária, mas é preciso fazer “play” para perceber que se trata de algo diferente e mais aliciante.
Para quem já fez a viagem de fio a pavio, a duração de 3h38m pode dar uma pista do que se segue: um filme gravado a partir de uma única câmara, instalada na frente de uma locomotiva, de modo a captar a extensão completa da atual Linha do Douro, entre as estações de Ermesinde e do Pocinho (embora o nosso itinerário comece pouco depois da estação de São Bento, no Porto, de onde partem alguns dos serviços diários da CP neste percurso).
O formato não é novo, mas não deixa de ser fascinante pela perspetiva “first-person view” (vista na primeira pessoa) da cénica linha ferroviária a partir da máquina que a percorre várias vezes por dia há 137 anos (desde a abertura do último troço até à fronteira com Espanha, atualmente desativado). Se alguma vez experimentaram um simulador de comboios, a sensação não é muito diferente na forma como somos colocados no lugar do maquinista e partilhamos o seu ponto de vista privilegiado.
é um filme que nos transporta para uma região e paisagem com o argumento e aparato técnico mais minimalista possível.
O documentário, realizado por Luís Sobreiro a partir de uma ideia de três jornalistas habituados a cobrir os caminhos-de-ferro em Portugal (Carlos Cipriano, Diogo Ferreira Nunes e Ruben Martins), já passou na televisão, mas precisei de três sessões diferentes na plataforma de streaming da RTP para dá-lo como visto. Ainda assim, não fiquem dúvidas, é um filme que nos transporta para uma região e paisagem com o argumento e aparato técnico mais minimalista possível.
A quem pode interessar este documentário?
Além dos historiadores do futuro, é fácil imaginar os entusiastas dos caminhos-de-ferro (nos quais me incluo) entre os primeiros a sentirem curiosidade por este filme, mas não só. Quem estiver a precisar de sair um bocadinho da sua rotina tem ali algumas horas surpreendentemente absorventes, e não totalmente desprovidas de incidentes.
Os aviões de combate a incêndios a sobrevoarem o rio (02h34m) ou as aves de rapina espantadas ao longo do percurso (02h25m) são exemplos de um cenário que não é indiferente à passagem do comboio. Aliás, apanhar esses pequenos sinais de vida ao longo das margens do Douro estão entre os regalos desta longa-metragem. Uma tarde de verão neste extenso quadro natural merecia ser captado assim, em movimento e sem assinatura.
O mundo parece um sítio mais simples quando visto desta perspetiva, a partir de uma máquina a avançar lentamente pelo vale idílico de um rio, fazendo paragens ocasionais em apeadeiros e estações de outro tempo para apanhar e largar passageiros aparentemente desprovidos de pressa. Estamos, afinal de contas, num dos últimos redutos ferroviários da baixa velocidade em Portugal (a velocidade média aqui é de 50km/h), onde a paisagem é para ser apreciada.
Uma tarde de verão neste extenso quadro natural merecia ser captado assim, em movimento e sem assinatura.
Outra dimensão lúdica do filme passa por tentar fixá-lo no tempo. Sabemos que foi gravado algures em 2023, no primeiro serviço da tarde (denunciado pelos ponteiros do relógio da estação de Redes, perfeitamente enquadrado no momento da paragem) de um dia de semana (a avaliar pela quantidade de passageiros visível nas estações na periferia do Porto), provavelmente a meio do verão (com base no estado da roseira que enfeita a estação do Pocinho).
Gostava de ter captado algum indício que me permitisse chegar ao dia exato da filmagem, mas terá de ficar para outro espetador mais atento (ou astuto). No final, a ficha técnica nomeia como "elenco" o maquinista, os revisores e o inspetor de tração, numa admissão criativa da natureza invulgar desta produção. O documentário em si não dá mais pistas sobre a maneira como ou quando foi gravado. Mas também não precisa. Tudo o que é importante ali está contido naquele enquadramento pela locomotiva transformada em câmara e na vontade que fica de voltar a apanhar aquele comboio.
“Linha do Douro - Um Património Sobre Carris” pode ser visto na RTP Play.
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