Texto e fotografias por Duarte Zemp

A minha viagem aproximava-se do fim e as saudades de Portugal começavam a apertar cada vez mais, porém sentia que não poderia sair do continente americano sem ter uma última aventura. Até este ponto, a minha experiência tinha sido repleta de desafios, muito rica, a todos os níveis e completamente diferente daquela que alguém com 18 anos costuma ter, mas eu queria mais!

Já tinha estado muito tempo nos Andes, desde a Bolívia até ao Equador, passando pelo Peru, onde tive a oportunidade de conhecer imensos nativos que me acolheram de braços abertos. Estive inclusivamente em aldeias remotas onde pude conhecer a verdadeira cultura andina, algo que, a meu ver, só é possível vivenciar quando se está aberto a deixar-se ir, confiando tanto nos outros como em si mesmo.

Tive direito a alguns dias de praia, que me fizeram recordar Portugal e muitas das nossas tradições relacionadas com o oceano, ainda que do outro lado do mundo. Desertos e o maior salar do mundo também fizeram parte dos meus últimos meses. A fauna e a flora amazónica não me eram desconhecidos, especialmente depois do voluntariado de um mês e meio na selva. Porém, faltava-me conhecer os nativos da Amazónia uma vez que não tinha tido oportunidade de contactar muito de perto com estes.

Comecei a investigar as possibilidades e reparei que estando no Equador, seria possível sair do país de barco, em direção a Este, de modo a ficar em contacto com a Amazónia equatoriana, peruana, colombiana e brasileira. Assim se juntavam duas grandes vontades minhas, por um lado conhecia os locais e, por outro, experimentava um meio de transporte diferente. Com esta ideia em mente, comecei a informar-me. Falei com outros viajantes, li blogues e recomendações, vi vídeos e estudei o mapa a fundo.

Amazonas
Percurso aproximado que o Duarte fez ao longo do rio Amazonas créditos: Google Maps/SAPO Viagens

Tudo começou no rio Napo, afluente do Amazonas. Parti muito cedo de Coca, num barco grande, cheio de passageiros. Como a viagem durava oito horas, acabei por falar com todos os que me rodeavam. Curiosamente, fiquei ao lado das únicas estrangeiras do barco.

Estranhei, porque sabia que aquele barco era usado maioritariamente por locais, tal como todos os outros que iria apanhar. Rapidamente quebrei essa barreira invisível entre locais e estrangeiros conversando com vários equatorianos curiosos com os motivos pelos quais embarcamos nesta viagem. Conforme avançávamos na viagem o barco ia esvaziando e, como a minha paragem era a última, quando chegámos a Rocafuerte, cidade que se situa no extremo do território equatoriano, sobrei somente eu e uma família originária dessa zona.

Interior do barco
Interior do barco créditos: Duarte Zemp

Ao chegarmos, convidaram-me para um almoço tardio e, notei de imediato, que as conversas com o José (um dos membros da família) eram muito mais rurais do que aquelas que tive em Quito, na capital. A sua revolta contra o sistema pelo esquecimento e desvalorização das comunidades locais em detrimento das cidades grandes era dos seus temas preferidos. Acabei por ficar para jantar, e claro, para pernoitar na sua casa, onde humildemente me designaram um local para colocar a minha cama de rede.

No dia seguinte acordei, literalmente, com as galinhas. Depois do meu despertar agitado, fui recebido pelo José com um pequeno-almoço de excelência, com muita banana frita, como sempre no Equador. Seguiu-se um passeio até ao porto onde ficámos à conversa com o Filomeno, amigo do José, que se encontrava a embarcar uma série de produtos que iriam ser vendidos nas comunidades, até Campo Sério, já no Peru. Não só esta era uma oportunidade de negócio como, claro, de transporte. Sabendo que a lancha comunitária iria demorar pelo menos três dias a chegar a Rocafuerte, tinha-me saído a sorte grande.

Embarquei de imediato após me despedir daquela família que me acolheu como um deles. Prometi eventualmente voltar e garantiram-me que, se um dia o fizesse, teria as portas abertas e iríamos explorar a região juntos. Como ainda faltava muita mercadoria, dediquei-me a ajudar a encher o barco. Tarefa complexa dada a humidade e o calor amazónico.

Aldeia amazónica
Aldeia amazónica créditos: Duarte Zemp

Ainda antes de chegar a Pantoja, onde iria pôr o carimbo de entrada no Peru, parámos o barco perto de uns pescadores, no meio do rio, que compraram comida para o seu almoço. Como me viria a habituar, fui o centro das atenções e ambos os pescadores estiveram vários minutos a vangloriar-se daquilo que tinha apanhado.

Voltei a ajudar a arrumar o barco e, aos poucos, comecei a sentir-me parte da tripulação. Pela recompensa do meu trabalho ofereceram-me novamente o almoço e como o barco estava repleto de mercadoria deixaram-me tirar o que me apetecesse. A dinâmica quando chegávamos às comunidades repetia-se. Aportávamos o barco e rapidamente se formavam semicírculos em redor do mesmo onde os adultos aproveitavam para comprar o que não era possível produzir nas suas hortas enquanto as crianças deliravam com os gelados que levávamos.

A vida no barco era algo entediante. Li e escrevi muito, por vezes conversava com quem me rodeava, brinquei com o filho do capitão, comi, dormitei e admirei a paisagem. Porém, valia pela interação com os locais quando chegávamos às comunidades.

Venda de produtos no barco do Filomeno
Venda de produtos no barco do Filomeno créditos: Duarte Zemp

A vida naquela região do globo surpreendeu-me. Já tinha ouvido falar da situação extremamente básica onde a maioria da população vivia, mas ao chegar lá e ao interagir com os locais apercebi-me que era muito mais grave do que aquilo que pensava que seria.

O atraso intelectual é notório. Muitas vezes os mais informados eram os poucos que sabiam ler. Já o alcoolismo chocou-me. A maioria dos adultos dedica a sua a vida a beber “chicha”, uma bebida alcoólica feita a partir de mandioca fermentada, em canoas típicas, extremamente apertadas e compridas. A água-ardente de cana-de-açúcar também era extremamente famosa. De água, apenas bebiam a do rio, muitas vezes poluída pela falta de possibilidade de limpeza e extração de resíduos ou pelos motores dos diversos barcos.

A minha chegada provocava sempre muitas emoções. Um homem branco, grande, no meio dos indígenas era visto por alguns como algo divino e pelos outros como algo demoníaco. A maioria das crianças tinha medo de mim e mesmo alguns adultos rejeitaram-me e ofenderam-me apenas pelo meu aspeto. Para acrescentar, enquanto estive lá circulava um mito que havia um “Pela-Cara”, um homem branco que atacava os nativos em noites de lua cheia, aparecendo do meio do mato. De acordo com esse mito, o tal individuo descascava a cara aos indígenas. Logicamente, tudo isto ditou a minha integração e aceitação. Porém, a maioria estava interessada e aproveitava para saber mais sobre outros sítios do mundo, começando pelo Peru, enquanto me contavam e explicavam algumas tradições.

Comunidade típica amazónica
Comunidade típica amazónica créditos: Duarte Zemp

A minha estadia com o Filomeno acabou quando chegámos a Campo Sério. Como tinha a possibilidade de apanhar um barco rápido em direção a Iquitos, que era o meu objetivo, não pensei duas vezes. Uma vez que o barco saía na manhã seguinte, um amigo do Filomeno ofereceu-me uma cama de rede e, tal como o amigo tinha feito até então, toda a comida foi-me oferecida e não me deixaram pagar nada.

Ao contrário das viagens anteriores, nesta não houve muitas interações. Devido ao cansaço acumulado aproveitei para descansar, ler e ouvir podcasts. A minha primeira interação aconteceu quando aportei e encontrei um equatoriano, o German, que já tinha vivido um pouco por todo o mundo e que se encontrava a fazer a viagem inversa à minha.

Tinha saído há semanas das ilhas Canárias, chegado ao Brasil e navegado todo o Amazonas, entrando por fim num dos seus afluentes. Até então ainda não tinha encontrado alguém a fazer o mesmo que eu, o que foi de certa forma muito reconfortante. Ofereceu-me uma “chicha morada”, a melhor bebida que já provei, feita com milho roxo fermentado, algo tipicamente peruano, e eu retribui-lhe pagando um “Tamal de Pollo”, que consiste em arroz com frango envolvidos por folhas e cozinhados desse modo. A comida peruana é incrível! Acabámos a noite com uma cerveja e um ótimo debate.

Depois de uma noite mal passada no barco e uma viagem de mais seis horas, chegámos por fim a Mazan, onde pernoitei. Fui novamente o centro das atenções. Apesar de ser mais perto de Iquitos, uma das maiores cidades do Peru, em Mazan a discriminação fez-se sentir de forma mais forte. Felizmente, tal como sempre até aqui, encontrei alguém que me recebeu de braços abertos. O Edilberto, um senhor com uma idade avançada, que vivia numa casa simples, sem eletricidade, com um chão feito em terra onde apenas existe o necessário, acolheu-me. Mostrou-me a sua igreja, o mercado e todos os cantinhos de Mazan e levou-me até Iquitos e às suas ruas repletas de tuk-tuks. Ainda hoje mantemos contacto através do telemóvel da sua sobrinha.

Edilberto na entrada de sua casa e cargueiro onde foi feita a viagem
Edilberto na entrada de sua casa e o cargueiro onde foi feita a viagem créditos: Duarte Zemp

Os últimos três dias desta viagem foram passados a bordo de um cargueiro que, tal como o Filomeno, ia de comunidade em comunidade carregar e descarregar materiais, animais e pessoas. O bilhete, comprado a bordo garantia-me refeições enquanto viajava, um espaço para pôr a minha cama de rede e casas de banho com duche, um luxo! Tive inclusive direito a ver os golfinhos de rio, exemplares cada vez mais raros.

Amazonas
Sinalética das três fronteiras créditos: Duarte Zemp

Quando cheguei à região das três fronteiras terminei a minha viagem pela América Latina, sabendo claramente que a trouxe comigo para a vida: conheci-me a mim mesmo, descobri-me e concluí que a pobreza, a ignorância, a decadência das comunidades com que contactei contrastam constantemente com a alegria e a pureza de quem está feliz e orgulhoso da terra que habita. É certo que não há tamanho conforto como voltar ao meu lar, mas fica a saudade daquele que encontrei várias casas-abrigo ao longo do meu percurso.

Projeto Alémundo

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Alémundo é um projeto que saiu do Alentejo pela mão do Duarte Zemp, um jovem de 18 anos que irá viajar pela América Latina durante sete meses. Conhecer essa região, a sua cultura e descobrir-se a si próprio são as linhas gerais deste projeto, que foca a sustentabilidade nas suas diferentes dimensões.