Texto: Duarte Zemp

O começo de toda esta aventura foi difícil. Estava em Coroico, na Bolívia, com um grupo fantástico, e, apesar de me sentir confortável, não me identifiquei muito com o lugar e, por isso, achei que era o momento de mudar.

Como tal, através do Workaway, descobri um projeto em Rurrenabaque, na selva boliviana. O projeto consistia em tratar de animais selvagens, enquanto se vivia no meio da floresta tropical. Após onze horas de autocarro cheguei a Rurre. Estava agora numa cidade que não conhecia - que me fez lembrar o verão alentejano pelo calor abrasador - a sentir-me perdido, sem conhecer ninguém e arrependido por ter deixado Coroico.

Rurrenabaque
Letreiro turístico de Rurrenabaque créditos: Duarte Zemp

A única maneira de chegar à ONCA (nome do projeto de voluntariado) era por barco. Como nos últimos dias tinha chovido muito, o rio estava demasiado cheio. Não havia qualquer tipo de conexão - nem sequer apanhava rede! -, o que levou a que ficasse desligado do mundo exterior durante toda a minha estadia.

Viagem de barco até ONCA
Viagem de barco até ONCA créditos: Duarte Zemp

Como estávamos no meio da selva, o contacto com a natureza era maior. Para além dos animais que eram tratados diariamente, tive a oportunidade de ver cobras e formigas bala (a formiga com a picada mais dolorosa do mundo). Sendo as regras do projeto bastante exigentes, passei as semanas seguintes a adaptar-me.

O meu primeiro turno foi com a Cefira, uma oncilla, um animal ligeiramente mais pequeno que um ocelote. Tinha que passeá-la, tentar ao máximo que ela estivesse fora da jaula, mesmo que isso implicasse, por vezes, vê-la dormir por uma hora seguida. Com sorte, era possível vê-la caçar.

Os outros felinos com quem poderia, eventualmente, trabalhar seriam mais exaustivos e provavelmente não iria desfrutar tanto como com a Cefira. Uma curiosidade: há muito poucos estudos sobre esta espécie devido à sua extrema raridade.

Relativamente aos macacos, o centro trabalhava com quatro: aranhas, capuchinhos, esquilo e "tamarin". Fiquei responsável pelos capuchinhos, o que me permitiu ver os macacos esquilos, uma vez que se encontravam na mesma zona. O centro tem cerca de quarenta capuchinhos, cada um com o seu nome e a sua personalidade e, idealmente, os voluntários conseguem reconhecê-los todos.

Tive também a oportunidade de trabalhar na clínica/quarentena onde tinha a meu cargo animais bebés ou animais mais debilitados. Aí, naturalmente, a minha responsabilidade era acrescida.

Com o avançar dos dias senti uma evolução exponencial, em todos os aspetos. Após uma estadia mais prolongada, é praticamente impossível não estabelecer uma ligação com os animais que trabalham connosco, mesmo que sejam selvagens.

Os capuchinhos têm de aceitar e reconhecer o novo voluntário como parte adjacente ao seu próprio grupo, isto quer dizer que não fazendo parte da hierarquia, é preciso na mesma ser aceite por eles. Estes mesmos macacos que, no início me puseram em situação de risco de ataque, passado algumas semanas vinham ter comigo de livre vontade e foi possível sentir o amor que demonstravam por mim, mesmo que seja de modo bastante animalesco. Algo muito comum era revistarem-me e mexerem-me na boca ou apertar-me o pescoço, num abraço que ao princípio me parecia exagerado.

Saber trabalhar com os animais e sentir-se confortável a fazê-lo também é algo que se vai adquirindo com o tempo. Acho que o processo passa pela insegurança e aprendizagem, como primeira fase. Depois disso já sabia como e quando fazer as coisas, mas ainda não me sentia confortável. Por fim, a terceira fase é aquela onde há conforto e segurança em fazer as tarefas, ao mesmo tempo que se cria uma conexão mais profunda com os animais.

Uma parte igualmente importante desta experiência foi a dos tempos livres, depois do trabalho. Sem conexão ao mundo exterior, estávamos completamente isolados de tudo seis dias por semana. Isso fez com que tudo fosse muito intenso - amizades, conversas, debates e até mesmo o tempo sozinho.

Trilhos pela selva
Trilhos pela selva créditos: Duarte Zemp

Era muito difícil ter tempos mortos na ONCA, a não ser que os procurássemos ativamente. Com tantas pessoas constantemente à nossa volta havia sempre algo para fazer, quer fosse jogar às cartas, falar, fazer uma fogueira, lidar com os animais que nos rodeiam, ver as estrelas, cozinhar, limpar, arrumar, aprender algo novo, treinar, passear pela selva ou provar uma fruta ou sabor novo.

O que não percebi logo no início, e só me apercebi bastante mais tarde, é que também é importante ter tempo para nós mesmos, seja para ler (li o meu primeiro livro em inglês e em espanhol), descansar ou dormir. Pequenos momentos como observar a natureza em silêncio e desfrutar de o fazer, muitas vezes são o suficiente para recarregar as energias que nos vão sendo "roubadas" de todo o lado.

Círculo à volta da fogueira
Círculo à volta da fogueira créditos: Dinu Perrein

As doenças foram, realmente, um fator bastante limitador. A fadiga é algo que, de forma mais ou menos intensa, acompanhou-me sempre. O cansaço adicionado às condições higiénicas e a comida que não era ideal, fazia com que pelo menos uma pessoa ficasse doente.

Mas, ainda assim, o que me custou foi ter a sensação constante que uma parte de mim se ia quando cada voluntário que me era mais próximo partia. Muitos dos voluntários, tal como eu, estavam a viajar e tinham prazos (vistos, voos…) e vê-los partir sem saber se nos voltaríamos a ver, custou-me imenso.

Passei seis semanas na ONCA, trabalhei e criei uma ligação com vários animais selvagens e acho que foi uma experiência única - talvez não volte a ter uma semelhante no resto da minha vida.

Foram semanas difíceis, mas, como estava rodeado de pessoas que proporcionavam ambientes incríveis, que passaram por muito mais do que aquilo que eu passei e mesmo assim olhavam em frente com um sorriso e uma visão otimista, fazia-me imediatamente sentir melhor.

Acho que é sempre difícil saber o exato momento em que se muda, mas eu estou certo de que neste mês e meio, ainda mais do que no resto da viagem, cresci, mudei a minha forma de pensar e tornei-me, de certa forma, mais maduro.

Estou triste por deixar para trás este projeto com todas as pessoas loucas (e maravilhosas). Sei que aquilo que é normal agora, como interagir ativamente com macacos ou imitá-los mesmo quando eles não estão por perto, vai deixar de o ser. Ainda assim, sinto que está na altura de seguir viagem, ainda não sabendo se para o Peru ou Equador.

Projeto Alémundo

No instagram @projeto_alemundo

Alémundo é um projeto que saiu do Alentejo pela mão do Duarte Zemp, um jovem de 18 anos que irá viajar pela América Latina durante sete meses. Conhecer essa região, a sua cultura e descobrir-se a si próprio são as linhas gerais deste projeto, que foca a sustentabilidade nas suas diferentes dimensões.

Lobo Scholarship

A Lobo Scholarship é um concurso promovido pela associação Gap Year Portugal e financiado pela Fundação Lapa do Lobo que premeia um/a ou dois/duas jovens com uma bolsa para realizarem o seu gap year de 6 a 10 meses. Se a candidatura for individual o prémio é de 5.000€ e se for conjunta o prémio é de 6.500€. O regulamento pode ser revisto e a candidatura pode ser feita no site da Gap Year Portugal. Vai ser valorizado, por exemplo, o rigor na elaboração do orçamento, a motivação, incorporação da sustentabilidade como uma prioridade, a originalidade do projeto, entre outros.