É domingo, muito cedo, e estamos no centro de Macau, na rua dos Mercadores. O senhor Along (o nome significa ‘dragão’) não pára um segundo, servindo os muitos clientes que chegam de todos os lados e se acotovelam para tomar o pequeno-almoço - uma tijela com a melhor canja de arroz da cidade. O arroz cozeu em água durante toda a noite, num pequeno fogão, numa enorme panela, até ficar completamente líquido. Agora, com uma grande colher, o senhor Along enche cada tijela com o caldo, a que junta depois outros ingredientes que estão pendurados na montra à entrada do seu estabelecimento: peixe, fígado, ovos de pato, carne de vaca e porco, alho, gengibre, óleo, vegetais e, no final, um pedaço de fartura chinesa (igual às farturas portuguesas mas sem açúcar e canela).

A sopa que resulta da mistura destes ingredientes com o caldo de arroz, é uma refeição de sabor intenso e reconfortante. “Tudo o que o cliente quer, eu ponho na tijela! Tudo, menos dinheiro…!”, diz-nos, a rir, o senhor Along, misturando palavras portuguesas e chinesas. Conta-nos que está neste lugar há mais de 40 anos a servir a sua canja de arroz, que já esteve em Portugal, que adorou comer bacalhau e pastéis de nata.

Lugares como o do senhor Along multiplicam-se pelas pequenas ruas do centro histórico de Macau oferecendo todo o tipo de ingredientes, cozinhados no momento: tripas, vegetais, cogumelos, carne de vaca ou porco, massas chinesas, línguas de vaca, bolinhos de camarão, de caranguejo ou de lagosta, enfim, uma variedade surpreendente de produtos apetitosos e cheiros convidativos. Comer na rua é um hábito muito asiático e em Macau a oferta é magnífica. Os chineses gostam de oferecer comida. Por isso, os milhares de turistas vindos de toda a China compram caixas de doces coloridas, grandes e pequenas (rebuçados, bolachas, biscoitos) ou produtos salgados (carnes de porco, pequenos pastéis) para oferecerem à família e aos amigos quando voltam a casa.

Macau
Língua de vaca cozida créditos: Food and Travel Portugal

Um hábito que faz multiplicar as lojas de comida nas ruas mais movimentadas da cidade. Mas nem só de street food se faz a ementa macaense. Quando os portugueses chegaram ao território, subindo o rio da Pérolas, por volta de 1557, já encontraram aqui pescadores e agricultores chineses. A gastronomia de Macau foi absorvendo, a partir daí, influências dos quatro cantos do mundo. As embarcações portuguesas, que faziam as rotas comerciais marítimas traziam produtos das índias e dos países africanos, além das influências da cozinha portuguesa. Não espanta, por isso, que a comida macaense se tenha desenvolvido numa mistura de sabores asiáticos com receitas portuguesas e ingredientes vindos de muitas latitudes. Foi esse cruzamento entre ocidente e oriente que contribuiu para que Macau integrasse, desde Novembro passado, a lista das Cidades Criativas da UNESCO, na área da Gastronomia, um título recebido com orgulho.

Aida Jesus, uma avó macaense agora com 103 anos, é uma das figuras mais notáveis da cozinha local, com uma vida dedicada a preparar as receitas que herdou da família: “As receitas antigas tiveram de ser adaptadas aos nossos dias por causa das porções. Antigamente, como havia pouco dinheiro, as quantidades dos ingredientes era muito pequena”. Hoje Aida Jesus, fica sentada num canto do seu pequeno restaurante, o Riquexó, na avenida Sidónio Pais, a ver como os funcionários fazem o seu trabalho. “Às vezes tenho de os corrigir nalguma coisa”!, conta satisfeita. Dos pratos macaenses, a avó Aida destaca o ‘Tacho’, a ‘Capela’ e o ‘Minchi’: o primeiro, é um cozido de carnes, como um cozido à portuguesa, mas feito com ingredientes locais (chouriço chinês, toucinho, carnes de porco, galinha, dobrada e hortaliça, pato fumado); a ‘Capela’ é um picado de carne de porco e chouriço português com ovos e queijo ralado e que vai ao forno a gratinar; e o ‘Minchi’ parte de um refogado com alho e cebola picados, molho de soja e batata frita aos quadrados, onde se envolvem depois as carnes de vaca e porco, picadas - serve-se com arroz branco e um ovo estrelado em cima de tudo.

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Minchi créditos: Food and Travel Portugal

Estes são também alguns dos pratos de referência do restaurante Litoral, gerido há mais de 20 anos pela simpatia e rigor culinário de Manuela Ferreira e passagem obrigatória para quem quer conhecer a essência da comida macaense. Manuela aprendeu a cozinhar com a avó e com o antigo chef Américo Anjo. A seguir à transição de Macau para a China, decidiu abrir o seu próprio restaurante: “Nessa altura havia poucos restaurantes de comida macaense. Tentei preservar a nossa comida. Achei que depois da transição, muita gente iria querer provar as comidas dos macaenses”. Não se enganou. O seu restaurante começou com 80 lugares, em 1995, passou depois para 150 e vai hoje nos 280, com mesas e cadeiras distribuídas por várias salas.

E especialidades? Vamos começar pelo porco tamarinho, um caso exemplar do encontro entre cozinhas europeia e asiática. “É um prato que dá muito trabalho”, diz Manuela Ferreira, “Primeiro é preciso preparar uma pasta, o balichão, com camarões chineses pequeninos, vinho chinês, vinho português, limão e piripiri”. Depois é preciso esperar três meses enquanto a pasta fermenta. Nessa altura, tempera-se a carne de porco com o balichão e o tamarinho (tamarindo), uma fruta comum na Ásia. Depois de cozinhado, serve-se com o arroz japonês do sushi.

No Litoral, também vamos encontrar uma farta lista de sobremesas: bebinca de leite (um doce de ovos com leite de coco), mousse de chocolate, gelatina de coco, gelatina de chocolate e pudim de café e ovos.

Muitas destas receitas são ensinadas aos cerca de 1600 alunos do Instituto de Formação Turística de Macau, divididos pelos quatros anos dos vários cursos ali existentes – gestão culinária, economia, desenho de menus, recursos humanos, equipamentos, entre outros. O instituto, a funcionar desde 1995, dispõe de um hotel e um restaurante, em pleno funcionamento, onde os estudantes praticam os seus conhecimentos, acompanhados por profissionais do sector e seguidos pelos professores.

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créditos: Food and Travel Portugal

O centro histórico de Macau é uma deliciosa sucessão de pequenas ruas de calçada portuguesa, praças de arquitetura surpreendente, subidas e descidas pelas várias colinas, lojas coloridas e um movimento contínuo de gente sorridente. Subimos por uma ladeira, rodeada de casario oriental, com janelas que substituem o vidro por conchas de ostra e três portas em vez de uma para ajudar ao arrefecimento da casa em dias quentes, e logo chegamos a uma praça de construção ocidental, onde não falta a habitual igreja. É assim por toda a cidade antiga, cada recanto é revelador do convívio histórico entre culturas.

Na rua de São Paulo, a senhora Wong Hoi Fa, vende dezenas de variedades de chá numa pequena loja com porta para a rua. Explica-nos que os seus chás, cujas receitas pertencem à família há mais de 100 anos, ajudam quem acorda mal disposto ou com ressaca, por isso são muito procurados. O chá é servido nuns copos pequenos e o seu sabor é forte mas muito agradável e não é difícil acreditar que pode ter efeitos benéficos depois de uma noite menos dormida.

Noutro ponto, temos a farmácia chinesa do médico Pac Cheong Tong. Depois de detetado o problema do paciente, o médico chinês prescreve de imediato a receita. Ali ao lado, duas funcionárias, usam dezenas de produtos naturais, fechados em frascos de vidro, em combinações diversas, de acordo com o tratamento: ervas, conchas, fruta olho de dragão, cornos de veado, ginseng, pepino do mar, barriga de peixe, saliva de andorinha-do-mar e pequenos lagartos secos. Depois da infusão, o cliente leva o remédio para tomar em casa.

Nas ruas estreitas, somam-se as lojas que vendem peixe seco salgado, muito utilizado na comida chinesa, mas em quantidades muito pequenas. Estamos na Son Fat, na rua do Guimarães: à nossa volta todo o tipo de peixe seco, embrulhado em papel: barbatanas de tubarão, estomago de peixe (para fazer sopa), vieiras, polvos, peixe-demónio e abalone - um molusco valorizado na cozinha asiática e muito caro, vendido aqui a mais de 800€ o quilo.

Passar da antiga malha de Macau para as novas construções turísticas da zona de Cotai é uma experiência alucinante. De repente, estamos na strip de Las Vegas, com os famosos Venetian (e a réplica dos canais da cidade italiana) e Parisian (com a sua torre Eiffel), ou ainda o Sheraton Grand Macao, o Wynn Palace, o MGM ou o Studio City, tudo hotéis de grande escala, com entretenimento, eventos, restaurantes, lojas e casinos que atraem diariamente milhares de visitantes, sobretudo asiáticos.

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Macau créditos: Food and Travel Portugal

Artigo originalmente publicado na revista Food and Travel Portugal