O barco que transportava Napoleão Bonaparte e sua mulher Josefina, a caminho do exílio em Santa Helena, fez uma paragem na ilha da Madeira. Napoleão seguia a bordo da Northumberland, nau almirante da esquadra inglesa comandada pelo almirante George Cockburn. O cônsul geral britânico na ilha, Henry Veitch, um escocês, terá subido a bordo e oferecido ao antigo imperador um cabaz de produtos madeirenses: frutas, doces e vinho. Uma lenda local, acrescenta a possibilidade de Napoleão e Josefina terem desembarcado furtivamente para um jantar de luxo oferecido pelo cônsul em sua casa.
O palco desse jantar teria sido a Quinta do Jardim da Serra, um magnífico espaço situado a 850 metros de altitude, transformado hoje em hotel. Por aqui se plantaram as primeiras plantas de chá na ilha da Madeira – e primeiras em toda a Europa -, também por iniciativa do cônsul Veitch. Uma produção que entretanto se perdeu, mas que o engenheiro agrónomo Marco António está a tentar recuperar. É ele o responsável por uma área de cultura biológica que rodeia todo o hotel e alimenta o restaurante da quinta, o Green Valley: “O clima temperado da serra permite que se crie aqui quase tudo.”
E é mesmo assim! Subindo ou descendo as encostas da quinta, encontramos as mais diversas árvores de fruto – macieiras, ameixoeiras, framboeseiras, cerejeiras, amendoeiras -, hortaliças variadas e uma vinha que vai este ano produzir a primeira colheita de vinho Madeira da Quinta da Serra. Produtos que garantem ao restaurante a certificação biológica nível bronze - 30 a 60 por cento dos conteúdos do menu têm origem bio. A imaginativa carta desenhada pelo chef francês Yves Gautier, revela-nos combinações como o peixe-espada em tempura, chutney de citrinos e banana com sabor de eucaliptos e pele de batata-doce frita; ou o frango biológico cozido em baixa temperatura, polenta de grão-de-bico e molho de tremoço.
Este é apenas um dos casos mais evidentes da evolução da gastronomia madeirense, muito atenta à qualidade dos produtos locais e à sua ligação a uma cozinha mais exigente. Uma visita ao Mercado dos Lavradores, na baixa do Funchal, num sábado de manhã, confirma esta ideia. São centenas, os produtores locais que exibem aqui os seus melhores produtos. Pela banca de Luís Nóbrega, espalham-se maracujás, mamões, pitangas, uvas jaqué, abóboras de todo o tipo e chuchus – que na Madeira se chamam pimpinelas.
No piso superior, milhares de malaguetas vermelhas fazem a decoração da banca de Nathaly Oliveira, uma madeirense nascida em Caracas, Venezuela. “Temos muitas variedades de pimentas na ilha mas as mais picantes são os gindungos”, explica. No piso inferior é o mercado do peixe: bodiões, peixes-espada, atuns, pargos, bicudas, peixes-porco, charuteiros, espalham-se pelas bancadas onde mãos experientes limpam e preparam os peixes. Por toda a praça, multiplicam-se bancas tropicais e muito coloridas de maracujá limão, pera abacate, ananás banana, maracujá ananás ou maracujá pêssego. Frutas que misturam sabores e são um desafio para os chefs de cozinha locais.
E este foi um ano grande para a alta gastronomia madeirense. Dois restaurantes da ilha foram premiados pelos inspetores do Guia Michelin: o Il Gallo d’Oro ganhou a segunda estrela e o William conseguiu a primeira. Vamos ao primeiro, ao encontro do chef francês Benoît Sinthon: “Seguimos uma cozinha de técnica francesa com produtos da ilha da Madeira (peixes, como o bodião, garoupa, pargo, atum, cavalas, cherne ou rascasso; e legumes, flores comestíveis, ervas aromáticas e frutas da nossa horta). Uma cozinha moderna, de estação, de pesquisa, aromática, saborosa e ligeira onde faço uma ligação entre os produtos madeirenses, os melhores produtos da península ibérica e alguns franceses.”
A pouca distância do Il Gallo d’Oro, está o outro restaurante ‘estrelado’ do Funchal. Luís Pestana, responsável executivo pela cozinha do William é o primeiro madeirense a chegar à estrela Michelin.“Temos uma cozinha de autor com alguma reinterpretação da cozinha regional, utilizando sempre produtos da Madeira”, explica o chef. “A cozinha é sempre mais genuína quando usa produtos locais. A nossa carta muda com as estações do ano, acompanhando os produtos da época, embora o clima subtropical da Madeira permita alargar um pouco os tempos de produção”.
Para Luís Pestana, também não há dúvidas de que a oferta gastronómica está no bom caminho: “Sente-se a evolução. Lançamos desafios aos produtores que nos fornecem: nos legumes, nas frutas, nos peixes e nas carnes. E estamos a obter os resultados desse desafio”.
Os turistas que visitam o Funchal não passam ao lado da variedade de produtos exóticos, sobretudo de frutas tropicais. Espalhadas pela cidade há inúmeras bancas onde se vende todo o tipo de frutas a quem passa na rua. Milhares de visitantes estrangeiros enchem as ruas logo pela manhã, ocupando jardins e esplanadas, da movimentada avenida Arriaga, partindo dos jardins municipais em frente ao elegante Ritz, até à Sé; ou percorrendo as ruas estreitas da zona Velha, subindo o teleférico até ao Monte ou deslizando nos carros de cestos que saem dos Carreiros do Monte e descem, velozes, por dois quilómetros de ladeiras inclinadas, até Livramento, guiados com perícia por condutores que herdaram uma prática com mais de cem anos.
Quase tantos anos, quantos os que a Fábrica de Santo António leva a fazer bolos de mel, um dos doces madeirenses mais conhecidos. Fundada por Francisco Roque em 1893, a fábrica começou por vender bolachas e biscoitos em latas de cinco quilos. Hoje mantém as suas instalações de sempre no centro do Funchal, na Travessa do Forno, nº 27/29 fabricastoantonio.com e os seus 15 trabalhadores continuam a seguir à risca as pisadas do fundador, produzindo doces variados de forma artesanal: rebuçados de funcho e eucalipto, bolachas, compotas de fruta, broas de mel tradicionais e, claro, os bolos de mel de cana. “Na Madeira, come-se bolo de mel durante o ano todo, mas no Natal é essencial em qualquer mesa!”, diz-nos Bruno Vieira, gerente da fábrica onde trabalha há dez anos. “O bolo de mel é sempre partido à mão, nunca se usa uma faca para não ferir os frutos secos e cristalizados”, aconselha Bruno. O bolo conserva-se um ano sem perder qualidades. “Bem pelo contrário, ao fim de ano ainda está melhor!”
Mesmo no centro da cidade, vamos encontrar também a Madeira Wine Company, propriedade da família Blandy há mais de 200 anos, desde que o inglês John Blandy chegou à ilha no início de 1808. As instalações abrigam os melhores Madeira da marca: os telhados de tijolo, as paredes grossas e o piso de madeira, somados à exposição solar do edifício, são o ambiente ideal para o envelhecimento do vinho. O vinho Madeira tem apreciadores célebres – Winston Churchil, Thomas Jefferson ou George Washington – e está ligado a episódios históricos: a independência dos Estados Unidos, em 1776, foi celebrada com um brinde feito com vinho Madeira.
“O vinho envelhece com o calor do sótão”, conta Diana Rincon, guia na visita às instalações (visita completa, 5,9€ com prova de dois vinhos). “No Verão, a temperatura aqui chega aos 35 graus”. A qualidade das velhas barricas de carvalho americano antigo é garantida por quatro tanoeiros da própria companhia. “No mínimo, o vinho passa aqui cincos anos em barrica. O mais antigo que temos é de 1948”, acrescenta Diana.
As primeiras uvas chegaram à Madeira poucos anos depois da descoberta da ilha, em 1419. Os Jesuítas tiveram um papel central na exploração de vinhas e no início do comércio dos vinhos. Numa visita à ilha, é obrigatório conhecer a fatia de terra onde os frades plantaram vinhas da casta Malvasia Cândida – a Fajã dos Padres. Até há pouco mais de um ano, esta faixa de cultivo, espremida entre o mar e uma falésia de 300 metros, só era acessível de barco ou por um velho elevador pouco confortável e muito assustador. Com a construção de um teleférico, a Fajã dos Padres tem agora um acesso simples, com uma vista deslumbrante.
O teleférico faz um autêntico mergulho no vazio antes de descer a pique até ao nível do mar. Lá em baixo, somos recebidos por Mário Fernandes, um engenheiro electrotécnico. Ele e a mulher são os proprietários deste lugar histórico: “Foi aqui que nasceu o vinho Madeira”, conta-nos, orgulhoso, “Os Jesuítas compraram a terra a um neto de Gonçalves Zarco (navegador e cavaleiro escolhido pelo infante D. Henrique para liderar a colonização da Madeira) e plantaram aqui as primeiras vinhas”. Os Jesuítas ocuparam a Fajã durante mais de 150 anos, até à sua expulsão. Nesta terra isolada terão chegado a viver mais de 50 pessoas, entre colonos e jesuítas. Além de zona agrícola, a fajã era também utilizada pelos padres como zona de veraneio.
Agora, é Mário Fernandes que toma conta da vinha e da pequena e antiga adega onde ainda hoje trata as suas colheitas, da vindima até à garrafa. “Hoje em dia engarrafamos apenas 250 litros de vinho por ano”, conta-nos. Vinho que é vendido aos muitos visitantes que procuram a Fajã dos Padres, sobretudo alemães, franceses, holandeses, russos, polacos e checos.
Descer à Fajã dos Padres é como entrar por uma porta do paraíso: dezenas de árvores de fruto (banana, abacate, mamão, pitanga), a proximidade do mar e o isolamento quase total. Os produtos biológicos alimentam o menu do restaurante da Fajã, um espaço ao ar livre, descontraído, quase em cima do mar.Mesmo ao lado, uma praia de calhau rolado e um pequeno cais, são o melhor pretexto para um mergulho nas águas suaves do Atlântico, cuja temperatura, ao longo do ano se situa entre os 18 e os 22 graus.
O respeito pelos produtos da ilhaserve de motor da inovação e da criatividade que ganham espaço na oferta da cozinha madeirense. “A Madeira não é só bolo do caco, poncha e espetadas!”. Quem o diz é Octávio Freitas, madeirense, 36 anos, chef executivo dos Hotéis Four Views da ilha e profundo conhecedor da cozinha local: “Há uma nova gastronomia na Madeira. Há 20 anos, quando comecei a trabalhar, os chefs eram quase todos suiços ou franceses. Eu era um dos poucos madeirenses na cozinha, hoje já há muitos. Deu-se uma nova roupagem aos pratos tradicionais”.
O chef Octávio defende também a gastronomia madeirense “sem faca e sem garfo, à base do palito”. São os dentinhos, petiscos variados, vendidos em pequenas doses. “A autenticidade está nas pequenas tascas espalhadas pela ilha, onde se fazem dentinhos de gaiado (uma espécie de atum) e de gata (uma espécie de tubarão), secos e demolhados e preparados em escabeche; ou de rolo de espada frito com cebolada”.
A equipa da FoodandTravel Portugal deslocou-se ao Funchal com o apoio da Associação de Promoção da Madeira.
Artigo originalmente publicado na revista FoodandTravel Portugal
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