Sangkae: o rio que é rua; a água que é chão; o verde da vegetação intensa, que desenha as margens. Os barcos que são: casa, transporte, meio de sobrevivência, de subsistência: tudo.
Vamos, subimos para o barco no lago Tonlé Sap (em Siem Riep), esse de madeira pintada: a verde e amarelo. É um barco que buzina, um barco que passa num caminho estreito, feito de água, entre casas de madeira gasta: pelo sol.
Queremos ver tudo. Olhámos para cima, olhámos para baixo. Aqui não há um céu: há dois, o de cima e este, mais perto de nós – que se repete na água. E é aqui que vive uma árvore que traz um coração desenhado na copa.
Passámos, lado a lado, com as casas e as gentes que as habitam, os olhos (nossos) não se acanham e acompanham as rotinas (deles): uns dormem, outros comem, outros tomam banho. Há roupa estendida e roupa por estender. Homens que consertam as tábuas dos barcos, das casas. Barcos que carregam lenha, para os cozinhados. Comida a ser feita, louça a ser lavada, louça por lavar. As redes de pesca a serem manuseadas: erguidas, levantadas, pousadas – nesse exercício de grande equilíbrio. E as crianças, curiosas, que olham, que sorriem.
Algures, nas estradas que estas águas têm, estão os caminhos casa-escola-casa, as meninas: camisas brancas e saias azuis – plissadas. Algumas parecem ter-se deixado ficar pelo caminho, com as mesmas camisas e saias vestidas e as mochilas cor-de-rosa, por abrir. Nesse dia não terão aprendido nada, nada do que se aprende e ensina na escola.
O motor parou, talvez preso no verde denso da vegetação que mora abaixo do barco . O condutor sai para o resolver e, confesso, foi um momento de suspiro colectivo quando o ruidoso motor se fez de novo ouvir.
A velocidade – ainda que contada em nós – também gasta tempo. Acabou a escola, há pequenos barcos que a rodeiam, alguns levam um adulto dentro – talvez o pai ou a mãe que foram buscar os seus filhos – mas a maioria vai cheia de crianças e vazia de adultos. Crianças que aprendem com o rio, sobre o rio, sobre a água, sobre as marés, são os meninos e meninas do rio. Alguns não devem ter nem quatro anos e vão, um em cada ponta, cada um com o seu remo, a acenar, a sorrir; praticam remo não por desporto, mas a técnica de o manusear tem de ser aprendida bem cedo, para (sobre)viverem.
Continuamos a viagem. Vemos barcos com crianças despidas, os corpos escurecidos pelo sol, pelo vento, pelas chuvas, o cabelo que outrora terá sido escuro fez-se dourado, ali, na parte virada para o sol.
A Mia vai virada para eles, para as casas, para os barcos, vai de pele tocada pelo sol, o mesmo sol, e os cabelos esvoaçam ao vento, o mesmo vento. Mas os olhos, esses vão diferentes, cresceram para deixarem entrar mais rostos, mais sorrisos, mais vida, nesse momento enchiam-se de meninos e meninas que passavam diante de si, nos seus barcos a sério, que navegavam a sério!
As palavras repetiam a curiosidade do olhar: – Como se chama aquela menina, aquele menino? Todos. Cada um deles. Cada um conta. Entrámos em casa do Chan, acompanhámo-lo enquanto comia peixe com o pai, sentado no chão. A Mia sentou-se com ele, lado a lado, e estavam os dois mais curiosos um pelo outro do que pelos desenhos animados que – em cores e sons – passavam no ecrã.
São 17h30, estamos a chegar, as redes de pesca, montadas numa estrutura feita de bambu, começam a ser recolhidas, assinaladas pelas garrafas de água vazias.
No caderno de notas, as páginas trocam o branco por palavras, na vontade de aproveitar a calma e a vida; os sorrisos doces e o trabalho duro que se percebe em cada movimento. Escreve-se e atravessam-se as águas, nessa luta entre engolir tudo o que vemos e ser engolido por tudo o que nos é dado aos olhos.
Em todas as casas estão crianças de braços no ar para nós, de sorrisos abertos, para nós, para todos dentro do barco. Imagino que para muitos seja o momento mais esperado do dia, olhar, acenar, e perguntar-se, ainda que em silêncio: – Quem são, de onde vêm, para onde vão, por que aqui estão?
A terra, aos poucos, começa a aparecer, as casas sobre a água dão lugar a casas construídas sobre a terra: faz-se o chão da casa sobre paus de madeira: longos, magros, tortos. Mas o rio continua tão perto como se as casas estivessem sobre ele. É com a água do rio que tomam banho, num momento partilhado – o banho está longe de ser o ato íntimo a que nos habituamos. Nesta mesma água bocejam a boca e lavam as mãos após o almoço. As crianças, chegadas da escola, tomam banho nele, por entre saltos, mergulhos, e, imagino, alguns pirolitos, tudo sob o olhar atento de quem está de passagem.
Fim da viagem. Chegámos (maiores) a Battambang.
Este artigo foi originalmente publicado no blogue Menina Mundo.
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