O Brasil cosmopolita e a sua multiculturalidade
Texto e fotografias por Beatriz Leão
Cheguei a São Paulo dia 24 de Março, onde fiquei hospedada com a família de uma amiga em Vila Madalena. Uma região de São Paulo de origem proletária com muitos habitantes imigrantes portugueses, espanhóis e italianos, que se afirmavam em força na época de 80. Esta zona é conhecida pela sua vida boémia ligada às artes, onde as suas casas antigas acolheram no início dos anos 80 estudantes e artistas. Por isso, senti-me muito acolhida, não só pela família que me recebia, mas também pelo ambiente tranquilo que se fazia sentir à minha volta — um bairro seguro com fácil acesso a transportes e à vida do centro da cidade.
São Paulo foi a maior cidade metropolitana onde já estive, muito movimentada, onde a velocidade de construção é muito acelerada. Os enormes edifícios das avenidas do centro, como a Avenida Paulista, caracterizam a rapidez dos dias pela necessidade de trabalho e produção. A par de toda esta folia, a cidade tem muitos lugares de encontro e de descanso agradáveis, enormes parques com uma vegetação densa como o parque Ibirapuera.
São Paulo também é rico em museus como o MuseuAfroBrasil, que destaca a perspectiva africana na formação do património e identidade da cultura brasileira; o MAM com a colecção de arte moderna Brasileira; e ainda o planetário. Também frequentei o parque Vila-Lobos ao fim-de-semana para visitar a biblioteca que dispunha de instalações óptimas com um ambiente bastante ventilado, que é muito necessário neste calor abrasador.
Aqui no Brasil, assim como nos países de temperaturas baixas, as famílias tendem a ficar recolhidas em casa, pois atividades no exterior tornam-se difíceis devido às altas temperaturas. Por isso, sempre que passeava durante o dia, era importante recolher-me num lugar ventilado onde me pudesse hidratar e descansar um pouco.
Por fim, visitei o parque Jardim da Luz junto à Pinacoteca — o grande museu de artes visuais com obras concebidas desde do séc. XIX até à contemporaneidade. Creio que de todos os museus que já visitei, a Pinacoteca foi aquele que mais me identifiquei pela multidisciplinidade das obras apresentadas, assim como pela sua arquitectura impactante com tijolo de burro.
A colecção permanente da Pinacoteca, explora o tema “corpo e território” por grandes nomes da arte contemporânea brasileira: Adriana Varejão, Sidney Amaral, Rosana Paulino, Maxwell Alexandre, entre outros, um corpo político, atento à memória colonial, que suscitou para mim uma grande desconstrução do olhar ocidental. Neste sentido, as artes plásticas colocam-se sempre muitíssimo mais reveladoras da história vivida, desvelando o véu daquilo que muitos desejam que permaneça escondido, ou que tendem a esconder um passado que não é conveniente revisitar. A imagem é um meio de manifesto necessário e um meio fundador das opiniões livres e discordantes, ela revela a experiência de cada sociedade.
Nos dias mais lentos em Vila Madalena, para além do mercado local maravilhoso, descobri uma livraria com muitos livros de literatura brasileira, que me fez mergulhar noutros tempos da história do Brasil. Torto Arado foi um romance que muito me marcou, escrito por Itamar Vieira Júnior, que explora as condições de trabalho escravo contemporâneo numa fazenda no sertão da Chapada Diamantina, que se estendeu à vontade de pintar e a novos registos de pintura que até lá não tinha explorado.
Nos dias em que explorei mais o centro da cidade de São Paulo, fiz algumas outras entrevistas a artistas de arte contemporânea entre eles: Flora Rebollo (@florarebollo), Laura Teixeira (laura_teixeira), Pedro Campanha (@pedro.campanha), Alice Dote (@alicedote), Mayawari (@mayawari.mehinako) e Eduarda Casal (@eduardacasal_).
Estas entrevistas foram realizadas a maioria no atelier dos artistas, procurando saber um pouco mais sobre o seu processo plástico, o trabalho diário e o desenvolvimento dos seus projectos. No caso de Flora Rebollo , Alice Dote e Mayawari tive a oportunidade de experienciar uma visita guiada às suas exposições, na galeria Projecto Vênus, Casa Gabriel e Herança Cultural Gallery.
Trago vários ensinamentos e aprendizagens destes contactos e trocas com artistas. A Flora Rebollo na sua exposição Ansiedade Cósmica, apresenta trabalhos com uma plástica que se difunde entre o movimento do seu corpo e a sua própria desconstrução. Numa das telas de grande escala utiliza o pastel de óleo e diferentes materiais como o batom, registrando o movimento do seu corpo, carimbando-o sobre a superfície. Noutros trabalhos procura uma fragmentação e uma apropriação da matéria de forma muito experimental, afirma que os seus projectos nunca começam por um contexto ou plano “que vão surgindo”. Realmente aquilo que Ansiedade Cósmica me trouxe, foi um universo potencial da experimentação plástica muito diversa, que se transforma num corpo independente. Colocando e lembrando-me a premissa: Dos universos de várias origens e diversidades plásticas pudemos reconhecer um corpo que caminha mais livre, mais seu. Curioso que lembrou que entre os fragmentos de tela recortados e cozidos se entram as memórias e os mistérios, tudo aquilo que ainda há por conhecer que muitas vezes ainda é quase impossível de aceder, mas que ainda assim o é o cosmo e a arte.
Alice Dote é uma artista cearense, que carrega na sua obra a representação dos vários tempos, o passado onde explora a época da sua infância e adolescência, o presente o olhar do seu quotidiano entre o seu atelier e as suas viagens até ao sudeste do país. É uma artista que procura no seu discurso plástico trazer temas lembrados pelas grandes mulheres escritoras de literatura: Annie Ernaux e Virginia Wolf, ao mesmo tempo que entrega à carne o poder de fazer revelar as memórias e expressões de si.
Alice Dote na exposição colectiva “o Nordeste não é só um lugar”, onde participa com um autorretrato de uma grande dimensão, provoca ao apresentar-se através da imagem da pintura, inúmeras questões, mas talvez aquelas que me ressaltaram terão a ver com uma tentativa de desconstrução de um preconceito relativamente à sua origem. Quem são, afinal, as artistas do Seará? Como se comportam, tanto no mundo terreno como no mundo da arte?
Um dos últimos artistas que conversei, foi Mayawari Mehinaku. É um artista indígena da região do Alto do Xingu, que fala a língua Aruak. Cria bancos, chamados xepí, de formas zoomórficas, entre os animais representados estão o tamanduá, a anta, a onça (ianumaka) e os pássaros (warapapá). Estes bancos são talhados a partir de um único tronco de árvore e são decorados com pigmentos naturais retirados do pequi, do uru um, e da madeira mãwatan (vermelho) e da madeira Iurilo e do carvão (preto).
O contacto com Mehinaku foi inesquecível, ter a oportunidade de conhecer um artista indígena é a possibilidade de conhecer de forma aprofundada a cultura de um dos povos originários do Brasil e a valorização que a arte tem no seu quotidiano como uma necessidade de afirmação social. O desenvolvimento da sua arte hoje em dia é muitíssimo importante uma vez que ela faz estabelecer uma valorização da cultura indígena na cidade, conseguindo reservar a sua dimensão religiosa e simbólica. A sua arte apresenta-se como uma possibilidade de troca com os recursos que a cidade oferece e ainda a representação cultural perante a sociedade capitalista que vivemos, procurando contribuir para a abertura de novos horizontes de reflexão sobre as complexas inter-relações entre as artes tradicionais e a arte contemporânea.
Ainda no centro da cidade, para além destas entrevistas, realizei workshops no SESC da Avenida Paulista — Impressão de pequenos formatos, com a artista Anita Cavaleiro. Após cada sessão de workshop acabava por passear a pé na avenida para ir de encontro com o MASP, o museu de arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Numa destas visitas, consegui visitar uma das exposições de maior dimensão que já vi na minha vida, de um artista que é uma das maiores referências de arte moderna, Francis Bacon com a exposição — Francis Bacon: A Beleza da Carne.
Após quase dois meses, numa imersão na procura do contacto com a arte contemporânea do Brasil, hoje encontro-me no Rio de Janeiro a realizar a residência artística no EV_Largo (@ev_largo) onde tenho a tutoria e apoio de outros artistas e pensadores, para desenvolver um projecto plástico que embarque e reflita todo o processo desta viagem. Encontro-me alojada no Cosme Velho, numa das entradas da floresta da Tijuca com uma paisagem de mata atlântica. Acordo com o barulho do frenesim de macacos e adormeço com os mais diversos sons da floresta. Tem sido uma experiência inesquecível, e penso que levo esta caminhada pela palma do pé para o resto do meu percurso. O Brasil tem me dado a conhecer a sorte da partilha comum da língua portuguesa e o quanto de herança cultural que partilhamos.
A Beatriz Leão vai viajar durante sete meses no Brasil, onde espera contactar com outros artistas emergentes e pretende que a sua arte seja usada ao serviço da comunidade através de workshops artísticos e de técnicas de artesanato ancestrais e contemporâneas. Podem acompanhar o seu projeto Gap Year, intitulado Pela Palma do Pé, aqui no SAPO Viagens e no instagram.
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