Périplo artístico: uma imersão na criatividade do nordeste brasileiro

Texto e fotografias por Beatriz Leão

Viajei para o Brasil com vontade de conhecer aquilo que me era desconhecido por território, mas que há muito habitava em mim, a pulsação da cultura brasileira. O plano da viagem parte da ideia de périplo que procura sempre terra junto ao mar desde o nordeste ao sudeste do Brasil, numa motivação de conhecer duas regiões de realidades distintas deste país de uma dimensão continental.

Neste gap year tenho como objetivo não só visitar os pontos mais característicos, como também contactar com a arte e o artesanato local. Desde que comecei a minha viagem tenho vindo a conversar com artesãos e artistas, alguns deles considerados património cultural vivo inclusive.

Beatriz na Praia Pajuçara
A Beatriz na Praia Pajuçara, na região nordeste do Brasil créditos: Beatriz Leão

Cheguei à cidade de Maceió, Alagoas, no pico do verão, dia 9 de Janeiro de 2024, as ruas quentes e luminosas, a vegetação densa de uma cidade banhada por mar, os mercados cheios de vida com uma variadíssima diversidade de produtos locais e o modo de vida mais simples que a gente do Nordeste leva, marcaram-me.

Conhecer a região de Alagoas, um território que ainda hoje conserva características ligadas à sua ancestralidade, às raízes do país, foi uma experiência riquíssima.

Os primeiros dias foram destinados a conhecer a cidade, como o centro histórico da cidade, a vida do mercado, as praias e as comidas típicas.

Após esse tempo de integração na cidade, tive oportunidade de conhecer as bordadeiras do filé como a Ivonete Santos dos Anjos, no pontal da Barra, perto da Lagoa Mundaú. Ivonete, a partir da sua história de vida, deu-me a conhecer esse lugar ribeirinho criador de um povo anfíbio, um lugar onde se valorizam os mergulhos, as pescas e as técnicas manuais. Ivonete fala da linha do bordado do filé como quem fala de uma ideia muito concreta. O bordado como instrumento de construção das relações de cor da natureza viva, textura e vazios. A base do bordado do filé surge a partir da mesma técnica de tecelagem das redes de pesca que desde a sua infância eram apresentadas pelo seu pai, que era pescador.

Dias mais tarde, tive a oportunidade de participar num programa, em Palmeira dos Índios, numa zona de mata no interior de Alagoas, que consistiu numa imersão na vida e costumes indígenas por nove dias. Estes dias, fizeram-me contactar com muitas adversidades, testando tanto a minha condição física como psicológica. Apesar de não atingidas algumas expectativas, a experiência trouxe-me a possibilidade de conhecer a origem do Brasil, através de um testemunho indígena e perceber de que forma as comunidades que povoavam as terras deste enorme país foram ocupadas, violadas e colonizadas.

Ainda no interior de Alagoas foi-me possível conhecer o povoado de Muquém, onde tive a oportunidade única de conhecer Irineia Nunes, a sua casa, família e atelier. O trabalho de Irineia, a representação de cabeças e mãos, nasceu das encomendas dos ex-votos dos romeiros, sendo o ex-voto uma comemoração de uma promessa feita em ocasião de doença e de perigo. Os romeiros pediam a Irineia para representar através da peça a comemoração dessa promessa. O gesto de transformar a matéria do lugar, a terra argilosa, em mãos e cabeças era como um ritual, um comprometimento com a realidade, em que a arte entra como meio de salvação.

Após a visita à região de Muquém faltava-me ainda conhecer os artesãos que manuseavam o barro na região de Capela, também no interior de Alagoas. Na paisagem seca de terras vermelhas e de fortes temperaturas encontrei um atelier partilhado com os vários artesãos locais, aprendizes dos ensinamentos de João das Alagoas, o pioneiro da região no manuseamento do barro.

Aí, tive o prazer de conversar com a artesã Maria Luciene de Silva Cerqueira, também conhecida pelo seu nome artístico Sil. Sil é o retrato de uma mulher que viveu, antes da sua arte com o barro, uma duríssima realidade do trabalho no corte da cana, um trabalho que apenas oferece condições mínimas e precárias para a sobrevivência e que ainda hoje marca gerações nesta região.

Hoje, Sil dedica-se apenas à arte de manusear o barro e é conhecida pelos seus retratos das cenas do quotidiano nordestino, como o casamento na roça, as festas joaninas e as manifestações do folclore. Conhecer Sil da Capela fez-me atentar para a sua força e determinação enquanto mulher, mãe de três filhos e artista que vive numa região interior de difícil acesso à educação e informação, caracterizada por uma dura realidade de vida como me disseram as suas palavras: “É uma luta constante fazer a minha arte”.

Mesmo em frente ao atelier de Sil, conheci o mestre artesão de Capela, João das Alagoas. Segundo João, o nosso encontro foi um “negócio de Deus!”. Após conversarmos sobre o seu trabalho, João conta que o seu nome foi dado por um amigo, um pintor brasileiro que apreciava muito o seu trabalho, o artista plástico Zé Cordeiro. Num momento emocionante, a viagem fazia-me percorrer não só terras estrangeiras, mas também dava passos sobre a memória da minha infância, pois Zé Cordeiro tinha sido o meu primeiro professor de pintura em Carcavelos, juntamente com a sua esposa Edna Araraquara. Olhando para a cerâmica de João das Alagoas, havia muita coisa que me era familiar nas figuras, a expressão dos olhos, a proporção, a divisão estratificada da composição na imagem. Enquanto percorria as paredes do seu atelier, marcadas com os seus registos espontâneos, João falou-me sobre a sua dedicação à arte do barro, assim como o seu encantamento sobre o artesanato português da zona de Estremoz, mostrando-me que, apesar da distância, as linguagens estavam bastante próximas.

Sil, no seu atelier
Sil, no seu atelier créditos: Beatriz Leão

Dias depois, viajei para uma povoação na beira do rio São Francisco, a quase mágica Ilha do Ferro. Antes de chegar ao povoado, encontrei-me com Roxinha, uma artista de pintura popular que retrata os temas da vida atual, os animais, as pessoas que a envolvem e regista nas pinturas algumas expressões e vivências dos seus dias.

Roxinha recebeu-me de braços abertos como uma pessoa do sertão sabe receber, com direito a manga e churrasquinho acabado de sair da brasa. No povoado da Ilha do Ferro tive o privilégio de conhecer artistas que se dedicam essencialmente à arte do manuseamento da madeira. Praticamente todos os habitantes daquela região vivem do artesanato ou da pesca e vivem daquilo que a natureza lhes oferece, como me contou Nikiela, a artista mais nova da região, que trabalha e pinta esculturas em madeira com temáticas em torno da mulher.

Foi na rua desse rico povoado que encontrei a casa de Morena Silveira. Quando pedi permissão para entrar encontrei-a a costurar e a criar com todo a amor e cuidado as suas bonecas de pano sentada na sua cama que estava virada para uma janela coberta por um pôr-do-sol inesquecível, marcado pela linha do rio de São Francisco. A sua humilde casa remetia ao regresso à infância e serve de retrato de dona Morena, hoje com 94 anos, que levou a sua vida a cozer estas bonecas que retratam a força da mulher. Sem dúvida, este foi um dos momentos mais marcantes dos passos que dei naquele território.

Rio São Francisco
Rio São Francisco créditos: Beatriz Leão

Depois de dias intensos de conversas e banhos de rio, realizei no LACA, Lar de Amparo para Crianças em Adopção, localizada na Feitosa em Maceió, um workshop inspirado no livro “plasticus maritimus” de Ana Pêgo. As crianças que realizaram o workshop tinham idades entre os 1-6 anos, por isso foi-me difícil aplicar as ideias que tinha trocado com a Ana, numa conversa realizada antes de partir para o Brasil. Porém, adaptei-me às condições e realizei uma atividade que propunha o desenho com “carimbos” e “pincéis” encontrados nas praias de maceió. A atividade foi uma felicidade muito grande para estas crianças que pouco contactam com técnicas artísticas e materiais simples como tinta e papel.

O meu desejo de visitar o nordeste teve começo pela partilha e toda a amizade com Vanessa Acioly, artista plástica nordestina que conheci nas Belas-Artes do Porto. A Vanessa foi um elemento crucial para este gap year, uma vez que, a região de Alagoas é a sua casa, portanto ela conseguiu mostrar-me os lugares mais escondidos e de difícil acesso, assim como apoiar-me no contacto com a maioria dos artesãos.

Vanessa Acioly tem hoje o seu atelier em Maceió e trabalha com a materialidade da terra, uma procura pela ancestralidade vivida não só pelas terras nordestinas, como também o encontro com a sua história. A pintura de terra sobre palha, e outros suportes, onde trata a repetição das linhas e a construção de padrões como um meio para a um estado meditativo e espiritual, que a beleza da sua arte lhe permite alcançar.

Depois de uma longa despedida de Maceió, fiz uma viagem noturna de 10h para Salvador da Bahia onde fui recebida por Elizabete, uma pessoa encantadora que me recebeu de braços abertos.

Vista do Pelourinho a partir da fundação Jorge Amado
Vista do Pelourinho a partir da fundação Jorge Amado créditos: Beatriz Leão

Durante uma semana, tive o privilégio de ser hóspede na casa de uma pessoa que está envolvida no mundo do cinema e das artes visuais, que me encheu de conselhos dos lugares a visitar em Salvador, da comida a não perder, assim como os nomes e referências da cultura Bahiana.

Salvador é uma região encantadora de uma mistura e multiplicidade de culturas, negra, indígena e branca. É uma terra que vive da beleza de diferentes crenças e religiões, caracterizada pelos seus sabores e cheiros, dos ritmos do samba e da música africana.

Durante a semana que passei em Salvador visitei o Pelourinho, o elevador Lacerda e todos esses bairros da zona histórica. Percebi os dourados da Igreja de São Francisco de Assis, mergulhei na arte, na política e na história através do Museu de Arte Moderna, do Museu de Arte Contemporânea da Bahia, da Casa do Carnaval da Bahia, do Museu Nacional da Cultural Afro-Brasileira, do memorial das Bahianas e da fundação e casa de Jorge Amado. Complementei a experiência com o acarajé, património nacional, a muqueca, entre outros pratos típicos, visitas às salas de cinema da UFBA e conversas que partilhei com Elisabete.

Aquando destas palavras, despeço-me de Salvador, sentindo os últimos sons e cores desta cidade que tanto me encanta, e preparo-me para mergulhar no ritmo metropolitano de São Paulo.

A Beatriz Leão vai viajar durante sete meses no Brasil, onde espera contactar com outros artistas emergentes e pretende que a sua arte seja usada ao serviço da comunidade através de workshops artísticos e de técnicas de artesanato ancestrais e contemporâneas. Podem acompanhar o seu projeto Gap Year, intitulado Pela Palma do Pé, aqui no SAPO Viagens e no instagram.