Na verdade, quem conhece os códigos, fica a saber a caraterização de cada família.
Diz José Barbieri que, por exemplo, se “numa casa, no último ano, morreu alguém, as pinturas são apenas azuis. Se há um filho novo, desenha-se um vaso com flores. Se o filho for varão, o desenho é um losango dentro do vaso. Se for uma menina, faz-se um coração. Noutras aldeias é diferente. Por exemplo, se há um casal recém-casado desenham-se dois corações entrelaçados com flores."
"Há ainda as profissões. Na casa do padeiro há desenhos sobre a sua atividade, na do agricultor há tratores, quem faz mobiliário tem móveis pintados na parede. Nas tascas também se critica a qualidade do vinho através das pinturas.”
José Barbieri da Memoriamedia, que se dedica à recolha e divulgação de património imaterial, fez uma pesquisa apurada sobre esta tradição “que só existe vagamente na Alemanha, onde se usa o giz para pintar a parte de cima das portas com algumas letras. Em Alenquer há uma simbologia própria, uma série de sinais que são comuns às aldeias onde esta celebração é praticada. Embora, em cada aldeia tenham significados diferentes.”
Esta tradição concretiza-se na noite dos Reis, de 5 para 6 de Janeiro. É o Pintar e Cantar dos Reis. “Normalmente o grupo de pintores vai à frente porque demora mais tempo. Os cantores vão logo a seguir. Em algumas aldeias começam a cantar em segredo junto à janela e depois, de repente, o refrão explode e fazem-se ouvir em toda a aldeia."
"Há algumas décadas atrás era hábito eles ensaiarem na casa mais distante da aldeia. Agora, em alguns casos, juntam-se no dia anterior para ensaiar o que vão cantar.”
Outro dado interessante da pesquisa que realizaram tem a ver com o repertório, o que é cantado. Segundo José Barbieri, “descobrimos que as letras que são cantadas têm origem em cancioneiros de 1640, publicados em Lisboa. Eram canções muito populares. É espantoso que nestas aldeias a tradição passou de geração iletrada para geração iletrada e onde a influência da igreja foi nula. Na altura tudo isto era feito à revelia da igreja desde os tempos da batalha de Aljubarrota.”
O modo como se cantava, há algumas décadas atrás, era mais sincopado, semelhante a uma missa medieval. Hoje, tornou-se mais melodioso. No entanto, são manifestações que, de uma forma surpreendente, transportaram até aos dias de hoje práticas que foram proibidas numa altura em que eram comuns em qualquer aldeia de Portugal Continental.
“A proibição foi no dia da batalha de Aljubarrota e a iniciativa foi da igreja, que não gostava dos peditórios feitos nestas festas populares. A igreja queria centralizar para ela os donativos e começa a proibir todo o tipo de manifestações populares onde existam ofertas. Incluindo a dos Reis, conforme está detalhado na Lei aprovada nesse dia."
"A partir desta altura começa a ser feito em segredo onde a autoridade não chegava. Estas são aldeias inseridas na serra de Montejunto e onde seria mais difícil fazer aplicar a lei”.
Quanto às ofertas, continuam a ser realizadas em algumas aldeias. “No porta a porta, depois de pintarem e cantarem, pedem alguma coisa. Normalmente o dinheiro é para ordenar uma missa pelas almas e o que resta fica para um almoço para toda a gente que cantou e dançou. Finaliza-se a função.”
As comunidades destas aldeias foram resilientes, mas era escasso o número de pessoas que pintavam e cantavam os reis. No testemunho de José Barbieri, quando começaram a fazer a investigação, em algumas aldeias havia apenas duas a três pessoas a pintar e cantar os Reis, para evitar que a tradição acabasse. Um pintava e o outro cantava.
Com o interesse sobre esta manifestação e com a atenção da Câmara Municipal de Alenquer, muita gente despertou para a vivência comunitária do passado. Onde ontem havia 2 pessoas a cantar e pintar, hoje há muitas mais. Há muitas pessoas idosas nestas manifestações, como sempre fizeram, e agora acompanhadas de jovens.
Pintar e cantar os Reis no concelho de Alenquer faz parte do programa da Antena1, Vou Ali e Já Venho, e a emissão deste episódio pode ouvir aqui.
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