E se trocássemos os relógios pelos moinhos, as rodas dentadas e os ponteiros pelo tempo a ser contado no atravessar da moega, pela passagem nas mós – movente e dormente; o tempo a ser água, a água da levada, que sabe sempre o caminho certo e quando parar.
Foi isto que fizemos nestes quatro dias de Desconexão Total, o desafio foi lançado pelo canal televisivo A&E que estreou recentemente a segunda temporada do programa com o mesmo nome. Roubámos a pressa aos dias, é assim que se vive no campo: desde o primeiro momento, abraçamos a ideia, pousamos os relógios, desligamos os telemóveis, a tv, apesar de fisicamente presente, nem à corrente foi ligada.
E desengane-se quem pense que viver o momento sem o relógio de pulso a apontar-nos o que devemos fazer fica perto do nada fazer. Desengane-se quem pense que tudo o que se faz é adivinhar as horas pela posição do sol, pela forma como atravessa os ramos das oliveiras. No sentir do vento que leva a flor e cobre o chão – comum e partilhado das dezenas de oliveiras – de branco. Ao ritmo de um baloiçar de pés – pequeninos e suspensos – no banco de madeira velha, com vista sobre as montanhas e os vales.
E se houve tempo para cada uma destas coisas, no lugar da Quinta do Rapozinho, muitas mais se acrescentaram e nos acrescentaram, senão vejamos:
Guardámos as vacas, com o cair da primeira noite e antes do jantar:
‘… temos de as guardar que há por aqui uns gatunos que gostam de as raptar’ – quem o diz é o Sr. Zé Fernando, o vaqueiro do sítio. Apresenta-nos o j. macaco, o boi mais brincalhão, e vai sorrindo, até aos olhos, quando fala do recém-nascido neto. Já dentro da vacaria, o jogo entre as sombras e a luz – que da janela se lança para dentro – envolve o desfazer dos fardos de palha e a distribuição pelas vacas de um misterioso encanto, ao qual nem o cheiro ou as moscas fazem mossa.
E se nos deitámos com as vacas, foi com os gansos que acordámos. Tentámos o milho, mas eles fizeram cara feia.
– Eu acho que eles não gostam de milho. – diz a Mia, no seu primeiro estudo dos gansos e, na verdade, nem os garnisés lhe pegaram. Contaram-nos que era de couves que gostavam, e aí sim, foi vê-los lutar por mais uma folha de couve fresquinha, acabada de sair da terra, na pequena horta que a quinta tem.
Deixámos as couves, que mais tarde viríamos a apanhar de novo, para mergulhar as mãos num saco de serapilheira cheio de flor de carqueja, para depois as cheirar; para descobrir as equináceas (famosas pelas suas propriedades terapêuticas). Pelo sabor na boca, num jogo de adivinhas, provámos para reconher: manjerona, tomilho, cebolinho, stevia, salsa, alecrim, lavanda dentada e hortelã. E, para dificultar a tarefa, os híbridos: tomilho-limão e tomilho bela-luz, hortelã-melão e as todas as demais combinações e criações pensadas pelo Vitor que, nos seus tempos livres de professor, gosta de tocar a originalidade, em campos de ervas aromáticas e infusões.
E depois deste amuse-bouche, foi a vez de viajar até à calçada e às gentes da Aldeia Medieval de Busteliberne, em plena serra da Cabreira. Diz a lenda que terá sido lugar de abrigos de pastores, que aproveitavam os seus socalcos para se protegerem da aspereza do inverno.
– Quem vem lá? – pergunta a Dona Rosa, num tom firme de quem confia na tarefa à qual se (auto)propõe, e continua – Só cá moram velhinhos que mal saem de casa. Os mais novos saem de manhã para trabalhar e só voltam pela noitinha. E eu, com os meus 72 anos, tenho sempre a minha porta aberta para tomar conta do que aqui acontece.
A Dona Rosa é uma espécie de guardiã de Busteliberne, conhece a sua calçada e gente como as linhas que traz nas mãos e ela talvez não saiba que nome se dá a isto que faz, mas trata-se de prevenção comunitária e nós, na cidade, sabendo o nome estamos muito aquém de a sabermos usar, de nos sabermos dar: assim.
Falou das couves com feijão do dia anterior, da vez em que abriu as portas da sua casa e cozinhou para ‘umas duzentas pessoas’ que, em noite avançada, procuravam um sítio onde comer. E da vez em que ofereceu tecto a 7 homens que procuravam um lugar onde dormir:
– Olhe, foi festa pela noite dentro, com guitarradas e cantorias até às tantas da manhã.
E ainda perguntou se não a teremos visto no Jornal de Notícias, porque apareceram lá dois senhores que queriam que lhes falasse do rally e ela disse tudo o que sabia e até que a neta tinha vindo de França, de propósito, para ver o rally passar pelo lugar onde nasceu.
– Não a vimos no JN, Dona Rosa, mas gostámos muito de a conhecer – cara-a-cara – e de ouvir – viva voz – as suas histórias. Saiba que o seu espírito comunitário é um importante legado patrimonial, lado a lado com as casas de granito, a calçada medieval e as couves com feijão, que voltaremos para provar.
E seguimos caminho por essa calçada, percorremos as suas ruelas, conhecemos as suas casas – ora em ruínas, ora recuperadas – passámos pela capela e sobressaltámos com o ladrar dos cães à solta – à semelhança da Dona Rosa, querem proteger os da casa dos desconhecidos. E o sol que sobre nós baixava obrigou-nos ao abrigo da sombra.
Foi no Parque de Merendas de Moinhos de Rei que fizemos o nosso almoço-piquenique, entre as árvores altas com os troncos cobertos de verde, que a Mia quis tocar e encostar o ouvido, para saber quem lá morava. E, lá à frente, os moinhos: os Moinhos de Rei. O rei fora D. Dinis que, através das suas ordens, transformou a história da moagem dos cereais em Portugal, onde as azenhas (moinhos de água) conquistaram terreno face ao pilão, ao gral e ao moinho-a-braços. O moinhos de água precisam das levadas e esta, que nós seguimos, nasceu no ribeiro do Moureirinho, era pela sua força que as mós destes moinhos trabalhavam e os cereais eram moídos. Depois, a água continuava o seu caminho – desenhado e decidido pela levada – para alimentar os lavadouros, tanques e lameiros.
Não havia qualquer risco de nos perdermos, bastaria seguir a levada e no final, em jeito de reforço pelo esforço: um lago, ladeado por esguias árvores. Aqui foi lugar de mergulhos e brincadeiras, observação de sapos e lançamentos de bola, que saltitava entre as nossas e as suas mãos pequeninas e irrequietas.
Neste dias, tivemos o São Pedro a presentear-nos com um calor que lembra o Verão, e assim nos salvou do vento agreste da montanha, por isso, abdicamos das meias e camisolas de lã, que aqui são tradição. Contudo, optámos por não escapar aos enchidos e ao mel que conquistaram lugar na mesa do lanche. Juntámos-lhes os queijos, o pão de frutos secos e o vinho espadal, como manda a gastronomia tradicional local.
Pelo entardecer fomos pastar as ovelhas, o Sr. Correia – agora pastor de todos os dias e antigo presidente da Junta de Freguesia de S. Nicolau – entregou-nos um dos campos, cheio delas, com um único pedido:
– Não as deixem ir para a estrada.
A Mia começou a aproximar-se delas e, ainda que já longe, continuávamos a ouvir:
– Sou uma pastoinha. Sou a Mia pastoinha – enquanto o repetia ia imprimindo uma maior crença nas palavras. Apanhou um pau que usou para as orientar. Sente-se tão à vontade na tarefa que as terá feito acreditar na verdade da mesma.
E assim andámos pelos três campos ali dispostos, a pastar as ovelhas – e a correr atrás delas – para as impedir de alcançar a estrada. Tarefa que concluímos com sucesso e com um enorme sorriso da menina que quer ser pastorinha mais vezes.
Despedimos de toda a família Correia, ainda trouxemos um saco cheio de pinhas, para facilitar a churrasco que essa noite teria lugar. Regressamos à nossa Quinta e, como no primeiro momento, demorámo-nos a olhar o verde que se estende até às mais altas montanhas e se alonga até aos vales mais profundos.
De frente para a casa-mãe, atravessámos passagens secretas desenhadas na sebe e brincamos às caçadinhas. Já dentro de casa, passámos os seus corredores: de um lado, as paredes das divisões; do outro, as janelas que se abrem sobre o átrio central – aberto ao céu. O chão de madeira range debaixo dos nossos pés e os móveis contam o tempo pelas camadas de pó que acolhem. Tudo a lembrar o tempo.
Num dos quarto, que outrora terá sido os aposentos de um dos senhores da casa, podíamos ler um poema sobre ele: o tempo: Procura tempo – era o título. Parece quase uma façanha do destino ele estar naquela parede, a lembrar o tempo que devemos procurar, aquele que mora fora das horas.
Na mesinha de cabeceira ainda está a receita da torta de bacalhau, que muitas vezes deve ter sido partilhada, nas mesas longas de madeira que a casa ainda guarda.
Juntam-se as malas de pele: gasta pelo tempo; os brinquedos que terão passado pelas mãos de todas as crianças daquela casa: quando ainda tinham mãos pequeninas, mãos de brincar; os alguidares e os baús que contam histórias dos livros lidos, dos cadernos onde o francês era aprendido, das fotografias. E até uma lata – já enferrujada pelo tempo – dos Biscoitos Invicta. O tempo parece ser o grande anfitrião desta casa-mãe: tempo a ser lembrado, em todas as coisas.
Apesar desta ser a casa-mãe, não foi no seu colo que dormimos, mas na Casa dos Tonéis – um das habitações da Quinta do Rapozinho. Confessou-nos o Sr. José Armando (que fez todo o lugar crescer) que, noutros tempos, aquela ‘casa’ fora uma nitreira (depósito onde convergem líquidos dos estábulos, sentinas, montureiras e que depois vai formar o estrume).
É curioso como, num só lugar, se conciliam os opostos: por um lado, uma reconstrução que respeita o material existente, que recupera as madeiras e reaproveita tudo o que pode e de antigos tonéis se fazem camas; por outro, quando olhamos os tonéis por dentro, revestidos de um tecido branco almofadado é um vislumbre futurista que nos assalta. E ficamos ali, entre o passado e o futuro, entre a recuperação e a inovação.
Viver nesta casa, ainda que por escassos dias, assume o carácter de experiência única, afinal:
– Quantos podem dizer que dormiram, namoraram e leram histórias de embalar dentro de tonéis ?
Todos os dias, ao amanhecer, repetia-se o gesto: o pão fresco, dentro do saco de pano, pendurado na porta. Era hora do pequeno-almoço!
Ao ritmo dos tragos de chá de hortelã a cair no goto, ouvem-se histórias das vacas, das ovelhas, dos gansos e de tudo o que nos tem enchido os dias. Até um passarinho pousou – asas quietas – tempo suficiente para receber um beijinho da mais pequenina de nós.
Este contacto com os animais foi vivido como um enorme privilégio. É fácil perceber que os medos que ‘criámos’ e alimentámos se devem, sobretudo, à ausência do contacto com os animais. A familiaridade, a confiança precisam de tempo: tempo para ver, para tocar, para alimentar, para gostar e saímos todos daqui a gostar mais de vacas, ovelhas, gansos e garnisés.
O tempo foi o grande anfitrião destes dias. O grande ganho desta desconexão.
O tempo, esse que dizem bater sempre certo, aqui despe-se em horas e minutos e assume mil personificações: está na apanhada dos limões que nos escorregam mãos abaixo; está no quadro de lousa no meio do jardim e em cada traço lá desenhado; está nos pés a baloiçar, para trás e para à frente, enquanto os olhos se demoram no verde; está no fechar de olhos, enquanto um pedaço do bolo de chocolate nos ganha a boca. Mora num mergulho de piscina e em cada pirolito que se lhe segue e até nas profundezas das águas frias de uma cascata. Mora em cada descida no escorrega amarelo, em cada gargalhada, em cada abraço nesta terra que ainda trazemos nos pés. Em cada flor que apanhámos, a seis mãos, no campo que o tempo pintou em pinceladas amarelo e lilás.
E assim se contam estes dias: em histórias na ausência da avidez da última página. Que importa chegar primeiro ao fim se, no caminho, tivermos sido engolidos pela pressa, pela correria dos dias, pela altivez do relógio (tantas vezes o relógio dos outros)?
E se trocassem os relógios pelos moinhos, as rodas dentadas e os ponteiros pelo tempo a ser contado no atravessar da moega, pela passagem nas mós – movente e dormente; o tempo a ser água, a água da levada, que sabe sempre o caminho certo e quando parar?
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Um abraço forte à Teresa e ao Paulo, pela amabilidade e disponibilidade que nos dedicaram nestes quatro dias, por todo o Tempo que preencheram connosco.
Obrigada ao Pedro pelo maravilhoso bolo de chocolate.
Obrigada ao Sr. José Armando, Sr. Zé Fernando, Sr. Correia e Vítor, pelos lugares, pelas vacas, pelas ovelhas, pelas ervas aromáticas, todos contribuíram para esta nossa história.
Este artigo foi originalmente publicado em Menina Mundo.
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