Para o seu "gap year", a Mariana propôs-se a atravessar a Europa de sul a norte e a partilhar, através da escrita e da ilustração, as suas impressões de cada etapa da sua viagem.
Texto e fotografias de Mariana Almeida
Cheguei numa noite ensopada. Não havia condições reunidas para me mobilizar numa apresentação digna à cidade que me iria acolher durante os próximos meses. Decidi então seguir para o alojamento dessa noite, onde um casal francês-argelino (super simpático!) me receberia num prédio nos subúrbios da cidade.
Depois de atravessar duas portas com códigos sofisticados e de tirar algumas camadas de roupa que dali para a frente já não seriam necessárias, entrei no elevador. Não entrei sozinha, um senhor na casa dos setenta fez-me companhia, e ao ver-me atarefada entre mochilas e casacos, perguntou-me qual seria o meu andar. Eu respondi: “Le dernier, merci.” Por alguma razão, nunca me esqueci daquela expressão de sobrancelhas arqueadas que pintava a cara daquele senhor, que me respondeu de volta: “Le dernier!”.
Já sozinha, aterrei nesse mesmo “Le dernier!”. A porta do apartamento estava semi-aberta, a casa calma e pouco iluminada: por aquela hora o pequeno filho do casal já se encontrava no seu sétimo sono. Arrastei-me até ao quarto e libertei-me finalmente do peso das mochilas que já acumulavam uma dormência no corpo cansado.
Ao caminhar ao longo do silencioso e escuro corredor que terminava numa sala ampla e envidraçada, percebi o que por outras palavras significava “Le dernier!”. A vista nocturna era panorâmica e sem pontos de fuga, àquela hora a sala era exclusivamente iluminada pela cidade luzente que se exibia à minha frente. Dificilmente se confundia esta paisagem com outra qualquer, pois quem poderia esquecer a verticalidade imponente e cintilante de uma Torre Eiffel.
Paris, nos seus meses longos de inverno, ficou-me marcada como a cidade que fazia os parisienses carrancudos deslizar pelos passeios como se fossem pistas de gelo; e como a cidade onde a brisa fria e cortante empurrava os turistas obstinados, de extremidades avermelhadas, para dentro dos cafés que vendiam os clássicos: “chocolat chaud”, “des croissants”, “les soupes à l’oignon", e outros tantos que indiscutivelmente deveriam ser sempre algo “petit”.
O turismo que existe hoje aplicado nas mais famosas cidades europeias funciona quase como um formulário: existem vários campos a serem preenchidos e quanto mais preenchermos, mais visitámos, logo, regra geral, mais conhecemos. O turismo é uma máquina de negócio que se adapta com o tempo, aquilo que significava visitar uma cidade há uns anos, hoje significa outra coisa totalmente diferente. É compreensível que exista uma aversão cada vez maior a cidades que se tornam explosivamente turísticas, porque tudo se transforma em demasia, somos confrontados com uma realidade díspar onde se erguem muros à volta da cidade com base na superficialidade e no capitalismo.
Ainda assim, prefiro não criticar uma cidade que foi embrulhada com um laço que não lhe pertence. Tento aprender a abstrair-me da superficialidade que nos tenta empurrar constantemente para os braços do capitalismo, e ao invés disso apreciar o seu carácter e a sua natureza mais visceral. O turismo acontece fruto da descoberta de uma beleza e de um carácter no seu estado mais puro. É certo que com turismo muitas coisas mudam, mas o deslumbramento é o mesmo: criticar uma cidade por ser o que é na sua metamorfose após o seu tempo do descobrimento moderno é indiscutivelmente absurdo.
Aos meus olhos, Paris é uma cidade altamente estimulante, cativa-me o facto de ser uma espécie de organismo com o seu próprio carácter. Altamente influenciada por diversos movimentos artísticos, assenta carrancuda numa base estética que se alimenta noite e dia pelos vícios de quem admira profundamente a arte.
Há um constante movimento de coisas a acontecer nela, das suas extremidades até à sua medula sente-se a vibração da extravagância, insensatez, elegância e provocação das várias correntes artísticas, trata-se da valorização da arte ao longo de séculos. Foi aqui que tive a oportunidades de explorar e aprender sobre a essência de se ser artista.
"There are no sculptors only, no painters only, no architects only. The plastic incident fulfills itself in an overall form in the service of poetry.”
Como Le Corbusier, muitos acreditam nesta coexistência entre as várias artes.
Le Corbusier é conhecido pelas suas grandes obras de arquitectura, mas também ele passava grande parte do seu tempo a pintar. Dedicava as suas manhãs à pintura e reservava as tardes para a arquitectura. Era um artista, como muitos outros, que se desdobrava em diferentes campos artísticos, desenho, pintura, escultura, frescos e tapeçarias, o seu trabalho era extenso e multiforme. Tendo eu estudado arquitectura, ficar a conhecer uma cidade que abraça esta versatilidade no ato de se criar foi altamente libertador. O ato libertador de se verbalizar “Eu sou arquitecto, ilustrador, pintor, artista.” deixa de fazer sentido dentro de uma cidade que respeita e valoriza essa multiplicidade, pois o conceito de se ser algo mais dentro do mundo das artes é de tal forma abundante que passa a ser um conceito bastante ordinário.
Foi também com André Devambez, na exposição “Vertigo of the Imagination”, que encontrei a possibilidade de um artista se desdobrar em vários estilos. Devambez foi um pintor, ilustrador e cartunista extremamente ecléctico, cada trabalho apresentava um novo desdobramento dele próprio, o artista. Não tinha medo no ato da experimentação, saía completamente dos limites que definem um artista da academia. Na mesma exposição conseguíamos ter acesso a uma panóplia de diferentes linguagens derivadas da mesma fonte. Quase que poderíamos afirmar que estávamos a degustar uma exposição de um conjunto de artistas de épocas diferentes, quando na verdade se tratava de uma única personalidade que elegantemente arriscava no processo de experimentação e plasticidade. Confesso que este tempo em Paris me trouxe uma libertação no que toca a esta dualidade, permitiu-me a aceitação e a valorização de quem de facto não consegue limitar-se a um campo de expressão artística.
Num dos dias em que fugia do frio dentro de um museu, decidi colocar o meu (mais que recente) francês à prova. Há saída do museu Petit Palais, havia uns discretos bancos de pedra por detrás de uma grande escadaria, onde duas senhoras sentadas petiscavam o seu almoço. Decidi juntar-me ao piquenique com a minha “baguette de fromage", e em poucos minutos, do outro lado do banco, surgiu um, “Bonne Appetite”. Satisfeita com a possibilidade de uma pequena interacção em francês respondi: “Merci, bonne appétit…Je ne parle pas bien Français. Je suis Portugais”.
E era inteiramente verdade, naquelas primeiras semanas pouco me fazia entender. O diálogo era bastante abstracto, visto que parte do meu vocabulário ainda flutuava no meu cérebro como um astronauta em gravidade zero. Até ao início desta viagem, o contacto que tinha com o francês praticamente começava nos livros do Tintim e terminava no filme da Amelie Poulain. Era me bastante difícil conseguir compor uma frase, quanto mais alinhar uma fluida conversação. Ainda assim, com o meu precário vocabulário e aos soluços verbais, tive a minha primeira conversa “comme si comme ça”.
Uma era francesa, a outra era belga, de sorrisos arregalados e olhos brilhantes punham de lado a garfada para me falarem sobre tudo o que acontecia naquela cidade. Todas as exposições, as permanentes e as temporárias; dos concertos que esgotaram em menos de uma semana; dos espetáculos que valem a pena ver apenas para dar entrada na grande e majestosa “Opera”; dos eventos realmente importantes e outros tantos que se fazem de importantes. Para as descrever utilizaria a referência dos dois irmãos gémeos,“Tweedledee e Tweedledumque”, que cruzam o caminho da Alice no país das maravilhas. O discurso de uma atropelava o da outra de entusiasmos sobre todas a possibilidades magníficas que existiam para se fazer naquela cidade. Assim como Alice, eu permanecia deslumbrada com todo o cenário que estas pintavam e ao mesmo tempo desorientada entre a velocidade de um discurso em francês e a impossibilidade de reter tanta informação. Pelo belo acaso, ou pela graça do subconsciente, acabei por ir dar ao encontro de uma das referência mencionadas, “Sam Szafran, Obsessions of a painter”, que foi indiscutivelmente a exposição mais bela que vi até aos dias de hoje.
Sam Szafran foi um artista francês contemporâneo muito atípico. Apesar de muitas das suas obras cruzarem o surrealismo, escolhia trabalhar a figuração que remava contra a grande corrente artística – nessa altura, a abstracção. Além disso, trabalhava com o pastel e aguarela, que eram materiais e técnicas pouco usados por artistas no século XX.
A passagem pela demasiado curta galeria que estava revestida de Szafran, foi uma descoberta contínua de inquietação e admiração pelas molduras que se apresentavam diante de mim. No final da exposição, ainda em êxtase, arrastei-me pelo resto dos corredores do museu. Completamente abalada por aquilo que tinha acabado de testemunhar, lembro-me de procurar algo que me conseguisse transmitir a mesma sensação. Tinha sido como assistir a um espectáculo de ópera, onde as músicas nos preenchem a alma sem conseguirmos entender aquilo que se diz. É aquele tipo de experiência que não compreendemos no seu todo, mas gozamos os estímulos que esta nos proporciona.
Decidi regressar numa segunda volta ao “Obsessions of a painter”, pois também eu estava profundamente obcecada pela compreensão daquilo que se apresentava perante mim. Desta vez estava determinada em tirar o meu tempo, estava ali para submergir por completo nos traços poeirentos do pastel e nas aguadas absorventes que construíam as composições sublimes e infinitas dos desenhos de Szafran.
Cada obra era como uma porta que revelava subtilmente a passagem de um tempo, de um lugar, e através dessa porta estava outra logo a seguir, com o mesmo tempo e o mesmo lugar, mas de uma forma completamente diferente. Cada pintura, cada porta, tornava-se mais profunda, mais minuciosa, mais viva. Tinham sempre um princípio, mas nunca um fim e era essa existência do inacabado que permitia a fuga do espectador para o próximo tempo, para o próximo lugar, para o próximo desenho.
Mais tarde vim a perceber que a repetição na recriação do tempo e do lugar nos desenhos de Szafran, vinha de uma honestidade para com ele próprio e de um questionar do mundo à sua volta.
"I always believed as Alberto Giacometti used to say, that reality is much more powerful than utopia, dreams or fantasy. What was important for me was less to achieve a successful work than to give people the opportunity to look a little more closely. An artist's role was to provide an alternative regard, a regard that offers an alternative view." Sam Szafran
Toda a experiência destes meses invernosos em Paris foi como um vulcão que entrou em erupção, num rebuliço de entusiasmo preenchido de inspiração e aprendizagem. Esta cidade cheia de portas que se enchem de sonhos efémeros, despertou em mim uma visão de possibilidades na vida de quem se quer aventurar e ser artista. No fim, senti que era definitivamente tempo de me afastar, pois Paris nunca deixava de ser um vício altamente drenante. No entanto, houve uma certa dificuldade em abandoná-la, pois eu e ela vivíamos do mesmo combustível altamente inflamável: a arte.
A Mariana explica aqui como planeou a sua viagem. Anteriormente, contou como correu a sua estadia em Barcelona.
Sobre a Mariana e o seu projeto
O Projeto Arda (Ao Ritmo Da Arte) chega-nos diretamente de Odemira desenhado por Mariana Almeida que se vai aventurar pela Europa durante 8 meses depois de vencer a segunda edição do “Emunicipa-te”. Também pode ser acompanhado no instagram.
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