“Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”, escreveu José Saramago no livro “Viagem do Elefante”. Talvez com Fábio Inácio tenha acontecido isso. Mesmo quando ainda não sabia muito bem qual seria o caminho a seguir, as viagens já estavam à espera dele. E o Pacific Crest Trail (PCT) já fazia parte dos planos que o destino guardaria para as suas aventuras.
Fábio ainda se lembra da primeira vez que teve conhecimento do PCT. “Estava aqui na Maceira [terra natal do viajante], a jogar futebol com o meu primo, quando ele me chama para ver algo que tinha visto no computador”. Corria o ano de 2007 e Fábio ficou encantado com as imagens grandiosas deste trilho que corta a costa oeste dos Estados Unidos da América e que é percorrido por viajantes de mochila às costas.
Muito aconteceu desde então, com momentos que foram moldando este fotógrafo e viajante a tempo inteiro. Primeiro, em 2010, uma surf trip à Indonésia deu-lhe a epifania de que era este o caminho a seguir: “quero fotografar, quero andar por aí a conhecer, a ter experiências, a acabar com ideias pré-concebidas que temos acerca de muitos povos”, conta ao SAPO Viagens.
Seguiu-se um curso profissional de fotografia, dois interrails sozinho pela Europa e planos para dar uma volta ao mundo e fazer um livro. “Em 2014 arranquei para uma viagem que era para ser de 18 meses e acabaram por ser 20. Foi aí que tudo começou”, refere. Depois desta viagem, Fábio afirmou-se como líder de viagens e fotógrafo, lançando o primeiro livro que também deu nome ao seu projeto: Walking Around. Apaixonou-se pelo Irão, país onde encontrou um povo hospitaleiro, que oferece estadia e comida de forma genuína.
E onde ficou o Pacific Crest Trail no meio disto tudo? A ideia de percorrer o trilho nunca desapareceu, mas foi sendo adiada. Em 2017 e 2018, Fábio tentou encontrar apoios para a viagem, mas não conseguiu. Até que em 2019 decidiu partir por conta própria.
Que comece a aventura
Na mochila, Fábio levava uma camisa de ananases e melancia e um chapéu de ananases que lhe valeu o apelido de “juicy fruit” durante o percurso. Não fez grandes pesquisas sobre o trilho e a preparação física também não foi intensa. “Um dos meus objetivos desta viagem era de superação física, mas, principalmente, superação psicológica. Eu sabia que o psicológico ia ser muito mais difícil, já que fisicamente o corpo vai se habituando”, diz.
Aos poucos, o corpo vai entrando no ritmo das caminhadas diárias e transforma-se numa “máquina”. Fábio começou o trilho com 73 quilos e houve uma altura que chegou aos 61. Conheceu casos de pessoas que começaram o PCT quase obesas e chegaram ao fim “super fits”.
Além de ser extenso, o PCT torna-se exigente por percorrer serras, montanhas, rios, lagos, cenários naturais isolados, desertos, além de ter a possibilidade de encontros com ursos, pumas ou coiotes.
Ainda assim, “o trilho é bem sinalizado, existe uma equipa de voluntários que faz a manutenção e uma aplicação que funciona só por GPS e que diz se estás no trilho, a quantos quilómetros é a próxima vila, onde é que há água”, explica. Mas nem sempre Fábio encontrou água, chegou a ficar um dia inteiro sem comida, até, finalmente, chegar a uma vila, onde era sempre recebido com simpatia e encarado quase como um herói pela população local.
“Normalmente, demorava três dias entre cada vila e fazia as contas à comida. Houve uma altura em que comia tudo o que tinha e depois passava fome no último dia”, recorda.
“Quando chegava a uma estrada, pedia boleia para ir à vila e as pessoas paravam sempre, houve pessoas a pagarem-me refeições nas vilas, queriam me dar roupa, chegaram a dar-me dinheiro. Quando viam que eu estava a fazer o PCT, olhavam para mim com um brilho nos olhos e pediam-me para contar histórias. Cheguei a estar sentado num restaurante a falar para todos e as pessoas não queriam que eu me viesse embora”, relata.
Quando viam que eu estava a fazer o PCT, olhavam para mim com um brilho nos olhos e pediam-me para contar histórias
Esta receção calorosa foi algo que Fábio não esperava. “Temos ideias pré-concebidas, eu também as tenho, os americanos nunca me fascinaram muito, temos aquela ideia de que eles pensam que são os donos do mundo. Neste caminho todo, recebi tanto amor nas pequenas vilas por onde passei, como recebi nas do Irão, da Birmânia ou da Mongólia. Há pessoas boas em todos os países, em todos os sítios”.
Sozinho e sem internet
Falando em ideias pré-concebidas, muitas pessoas pensavam que Fábio passava grande parte do tempo sozinho, isolado, “quase a morrer”, mas não foi bem assim. O trilho é percorrido por outros viajantes que se encontram pelo caminho, acampam juntos e trocam experiências. Há também os visitantes de fim de semana, que enchem o PCT para aproveitar as suas paisagens magníficas. Por exemplo, no norte do estado de Washington, “é mesmo selvagem”, ou nas serras da Califórnia, “foi fascinante”.
Ainda assim, a opção de Fábio foi estar a maior parte do tempo sozinho – daí ter começado de norte para sul, para encontrar com menos gente – e sem internet.
“Uma das coisas mais bonitas do trilho foi não ter internet, só tinha internet nas vilas, e disse para mim mesmo: só vais usar a internet de cinco em cinco dias. Se eu chegar à vila depois, não ligo a internet. Foi tão bom acordar todos os dias de manhã e nem olhar para o telemóvel”, recorda.
Houve um dia em que estive o dia todo sem beber água
No entanto, a situação mudou quando chegou ao sul da Califórnia, na parte mais árida do trilho, em que muitas vezes chegava aos pontos de abastecimento de água e estavam secos. “Então comecei a ir à internet o máximo de vezes para escrever na aplicação aonde havia água ou não, para o pessoal que vinha atrás de mim saber. Houve um dia em que estive o dia todo sem beber água e urinei 11 vezes sangue. Pensei que, se calhar, o meu corpo pudesse colapsar. Estava desidratado, mas, felizmente, consegui chegar a um sítio com água”.
Encontros imediatos com ursos e puma
Mas as aventuras não ficam por aí. Logo nas duas primeiras semanas, choveu torrencialmente. “Muitas vezes, montava a tenda à chuva, ia para dentro da tenda todo molhado, senti-me completamente miserável”.
Um dos maiores desejos do viajante era conseguir avistar ursos e pumas no seu habitat natural. “Tive a sorte de estar à frente de cinco ursos, durante quatro vezes”. Um dos encontros foi mãe e cria, altura em que Fábio sentiu mais receio. “Senti mesmo a força deles, se eles quisessem tiravam-me dali num segundo, mas nenhum deles me fez mal. Eu fazia barulho e eles fugiam sempre. Com a mãe e o filho, foi quando tive mais receio, tive a sorte de o filho correr no sentido oposto, e a mãe correu atrás dele”, conta.
A certa altura, Fábio começou a caminhar durante a noite. “Ao início ia a falar alto, porque normalmente quem anda sozinho, mesmo durante o dia, vai a falar alto que é para espantar os animais, a dada altura, ganhei tanta confiança que deixei de falar”.
Numa destas noites, Fábio viu um puma, sentado no trilho, a encará-lo, “a 10, 15 metros de mim”. “Foi a vez que fiquei mesmo cheio de medo, falei para ele e ele foi-se embora, super tranquilo, eu fiquei aterrorizado, tinha planeado andar até à meia-noite, mas acampei logo a seguir”, descreve.
Estas e outras aventuras podem, agora, ser encontradas no livro Walking Aroud Sul que reúne o diário de 108 dias de viagem e muitas fotografias a preto e branco do percurso. Face à situação atual, a divulgação do livro será feita de forma online, através do site e do Instagram do viajante. Mas, para quem comprar o livro, Fábio vai dar a possibilidade de um encontro mais privado, com duas ou três pessoas, para partilhar mais histórias da viagem, algo que adora fazer.
Numa altura em que é difícil prever quando vamos poder viajar como fazíamos antigamente, antes da pandemia de COVID-19, Fábio já tem, no entanto, destinos na lista das próximas aventuras: “viagem por terra até a Guiné, Paquistão, América do Sul e Central”.
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