Eram 5h30 quando deixámos o nosso hotel – no centro de Siem Reap – em direcção ao norte da cidade. Subimos o tuk-tuk a caminho dos templos, para aí vermos o nascer do sol. Nessa noite dormimos mal, o calor húmido que se faz sentir em Siem Reap parece por o sono a fugir durante a noite, para o apresentar – pelos olhos e pelo corpo – na sua maior força, quando o dia veste o sol gigante.
– Onde vamos, papázitos? – pergunta ela, enquanto as mãos cheias ainda esfregavam os olhos, na tentativa de lhes arrancar o sono.
– Vamos caçar borboletas, correr atrás das suas asas de todas as cores – respondo-lhe eu, no embalo do mito sobre o naturalista francês Henri Mouhot que, no final do século XIX, teria encontrado o templo acidentalmente, enquanto as caçava: às borboletas. Ela sorriu.
Pelo caminho, o dia começa a apagar a noite, a luz baixa sobre o mundo, sobre o lago – o mesmo que, no final do dia anterior, a aproveitava para repetir em si as árvores que se espalham na berma. Nesse mesmo dia, vimos famílias inteiras jantarem ali, em mesas improvisadas, feitas de panos largos sobre a relva.
Não nos julguem especialmente corajosos, é uma prática comum: sair bem cedo para melhor suportar o calor – que, por aqui, se faz sentir sem piedade – enquanto se visitam os templos a céu aberto.
Desrespeitamos a ordem e não seguimos nenhum dos circuitos previstos nos mapas para as visitas. Saltámos, e no salto saiu-nos a sorte grande, escapamos à multidão e tivemos o privilégio de caminhar calmamente pelos templos, de os observar sem a presença constante de alguém a esconder uma parte.
Estamos no lugar dos templos, dos mais importantes templos do mundo – nós: esta casa que somos, de pernas, de braços e três corações – estamos agora no meio daquele que é o maior símbolo do Cambodja, património da humanidade (desde 1992) e a maior estrutura religiosa alguma vez construída. Posso dizer: nunca a obra do homem me pareceu tão impressionante. Podemos dizer: nunca a obra do homem nos pareceu tão impressionante!
Entrar pelos templos é entrar pelo tempo, lá bem longe. Os relevos narram histórias dos livros épicos hindus, as portas e janelas de pedra imitam formas em madeiras. Em Ta Prohm temos as árvores e as suas raízes-braços, que seguram a pedra; em Bayon temos as quatro caras, o terraço do elefante; em Angkor Thom temos: ora Devas (Deuses), ora Assuras (demónios), em lados opostos, a desenharem o portão de entrada. Se nos centrarmos no templo de Angkor, de um recinto para o outro a altura aumenta, os prasat ou torres piramidais simulam as montanhas e o percurso, com as sucessivas subidas através de escadas íngremes, representa a ascensão ao Monte Méru (prasat central) – lugar lendário da mitologia hindu – a casa dos deuses. Por isso, os templos não eram locais para reunião dos fiéis mas para morada dos deuses. Apenas a elite política e religiosa tinha acesso aos recintos centrais.
E mais, mais templos, séculos de história guardados entre pedras e raízes, pela floresta dentro. E se às pedras e raízes não se lhes reconhece o coração, compensam os corações de mil homens (quantos mil!) que se espalham pelos templos – sol a sol – do nascer ao pôr.
É longa a história entre a pujante construção e o abandono, entre a restauração e o abandono. Entre o hinduísmo e o budismo, em função dos reis à frente do império Khmer: Suryavarman II, Jayavarman VII, Jayavarman VIII, Jayavarman VIII, Srindravarman. Abandonavam-se e retomavam-se crenças hinduístas até 1432, quando, com a decadência do Império, Angkor foi abandonado.
Henri Marchal foi o arquitecto responsável pela restauração e concentração da mesma no templo de Angkor, havendo templos que nunca chegaram a ser tocados, a não ser pela natureza, pelas árvores e raízes que seguram e evitam a derrocada.
Diferentes equipas internacionais intervieram e continuam os trabalhos de restauração, recorrendo ao método trazido pelo arquitecto – anastilose ou reintegração – processo que consiste em recolocar as peças originais que entretanto caíram. Contudo, os trabalhos de restauração nem sempre adequados, entre 1986 e 1992, um deles passou por retirar toda a vegetação, musgo e líquenes das pedras. Os produtos químicos utilizados danificaram a pedra, deterioraram alguns dos baixo-relevos e suspeita-se mesmo da presença de uma bactéria que possa estar a acelerar a degradação da superfície das pedras e cuja proliferação poderá dever-se à ausência de uns minúsculos líquenes eliminados durante o trabalho de limpeza e restauração.
Intervenções apressadas e sem meios levaram a pilares reforçados com braçadeiras metálicas oxidadas, emplastres que acabariam por rachar, barras de aço embutidas na pedra, intervenções entendidas como um ‘mal menor’, um mal menor que não passará despercebido a um olhar mais atento.
E nós vimos todas estas coisas, não sem corrermos atrás delas (da história e da Mia); não sem pedirmos (à segunda) que parasse – para vermos mais, melhor; ou que caminhasse – para vermos o que vinha a seguir. Pedras. Raízes. História, séculos de história, sentidos com a Mia nos braços, ou a correr e, pelos próprios pés, a viajar através do tempo, atrás no tempo.
Pedras. Raízes. História, séculos de história e ela – no meio de todas as coisas – a lembrar o coração.
Este artigo foi originalmente publicado no blogue Menina Mundo.
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