O primeiro comboio foi de Deli para Agra que correu normalmente, sem atrasos, mas não deixou de ter algumas peripécias. Como era a primeira vez que ia apanhar um comboio, não sabia muito bem como proceder e ao ver um senhor na entrada da estação achei que lhe tinha de mostrar o meu bilhete pois vi uns outros viajantes a fazê-lo. Ora, isso foi um erro porque tendo o bilhete não preciso mostrar nada a ninguém, a não ser dentro do comboio. Aquele senhor era basicamente um impostor e eu tive muita sorte em não ter caído na armadilha. Ele diz-me que o meu bilhete está com um problema e manda-me para a bilheteira número 8. Começo a ficar nervosa por ter pago muito pelo bilhete e ainda ter problemas. Comecei a pensar que tinha sido enganada pela agência, mas afinal não.

A minha sorte foi, portanto, não estar ninguém na tal bilheteira a que ele me direcionou. Volto para ele para o informar disso mas ele insiste. Quando volto à bilheteira por uma segunda vez, decido perguntar ao senhor da bilheteira ao lado e mostro-lhe o bilhete. Ele diz-me claramente que não tem problema nenhum, mas eu explico que alguém me estava a enviar para a bilheteira ao lado e a afirmar o contrário. É nisto que ele diz com as palavras todas que esse senhor é um burlão e que me estava a tentar enganar. Nem acredito na minha sorte de não estar ninguém na bilheteira ao lado, pois caso estivesse já tinha sido enganada.

Já dentro do comboio, depois de verificar o meu lugar, vem um senhor aclamar que aquele era o lugar dele. Como dá para imaginar comecei outra vez a stressar. Tinha a certeza que aquele era o meu lugar! Entretanto dou-lhe o meu bilhete para ele analisar com outro indiano sentado ao meu lado e depois de vários minutos a falarem sem eu entender uma palavra, lembro-me de ter lido no próprio do bilhete para não o entregar em mãos a nenhum desconhecido. Começo a pensar que ele vai fugir com o meu bilhete e é aí que começo a insistir para ele mo devolver. As pessoas ao meu redor notaram que eu estava a ficar irritada (eram todos indianos). Ele lá acabou por me dar o bilhete depois de terem concluído que ele é que estava no comboio errado - de facto ele tinha o mesmo lugar que eu, mas num outro comboio. Foi uma situação de nervos à flor da pele.

Já a chegar a Agra, começo a ver vários homens agachados, uns após os outros, à medida que o comboio avança. Acho aquilo estranho e por mais que parecesse que estavam a defecar não queria acreditar. Tenho de tirar as dúvidas e começo a focar-me mais neles. Estavam de facto a fazê-lo. Foi uma visão muito estranha pois com tanto sítio escondido para o fazer e eles apoderam-se da linha de comboio para esse propósito. Ainda assim quando cheguei ao hostel tive de perguntar e realmente era verdade.

A viagem de Agra para Varanasi também foi de comboio e foi a mais longa de todas. É um comboio onde se dorme e passei lá cerca de 22h. O comboio atrasou cerca de 5 horas, mas na Índia isto é normal acontecer. Estes comboios para dormir em “Upper Class” não são assim tão maus, ou então o meu conceito de "tão mau" já não é o mesmo. Fui abastecida com comida e bebida pois apesar de haver sempre vendedores a entrar e sair, por vezes vendem coisas estranhas que não sou muito aventureira de as provar. Esta viagem de comboio foi a mais tranquila de todas.

Varanasi
Varanasi Varanasi créditos: While You Stay Home

O meu último comboio na Índia foi de Varanasi para Calcutá e esse sim foi um pesadelo. O comboio foi cancelado e tudo o que se seguiu por esse motivo foi a pior experiência de toda a viagem. Quando cheguei à Índia a ideia que me venderam era que para comprar bilhetes eram precisos cerca de dois dias de avanço porque está sempre tudo esgotado. Comecei a entrar em pânico pois não poderia esperar tanto tempo já que tinha um avião para a Birmânia em dois dias. Tenho de ir para Calcutá neste dia. Direciono-me ao departamento de ajuda a turistas que não ajudou nada mas ao menos encaminhou-me a um senhor que me ajudou a perceber como devia proceder. Não sabia se era uma pessoa de confiar ou não mas não tive outra alternativa. Tinha de confiar nele e fazer o que me dizia, mas pareceu-me boa pessoa e o meu julgamento estava correto.

Na Índia os comboios têm várias classes, o bilhete geral dá acesso a uma área que tenho em mente ser muito assustadora e foi esse bilhete que comprei. Paguei uns cêntimos por um bilhete de comboio que ia durar horas e horas e o bilhete que tinha comprado 10 vezes mais caro ficou sem efeito pelo que ia ter de comprar outro. O que este senhor me disse é que não podia então comprar o bilhete para a classe que eu queria (aquela com camas para dormir) e teria assim de comprar o bilhete geral e no comboio pedir um upgrade para a tal classe. Todos os bilhetes de comboio têm um lugar assegurado e eu sabia disso. Sabia que não tinha um lugar para mim mas tinha de ir neste comboio e arriscar. A experiência foi assustadora e muito desagradável, não só pela forma como os indianos olhavam para mim, mas também por todo o cenário possível e imaginário que ia pintando na minha cabeça.

Ora, ali estava eu sentada no espaço entre carruagens em cima da minha mochila. Quem já andou de comboio na Índia sabe que este não é sítio para ninguém. É barulhento, aberto e muito desconfortável. Era o sítio onde até os serviçais do comboio tinham um lugar para se sentar e eu ali num canto. Começam a olhar para mim e a rir, como que a fazer chacota, o que não estava a ajudar nada à situação. Vêm ter comigo e perguntam o que estou ali a fazer, mas não falam quase nada de inglês. Vão chamar outras pessoas e dou por mim a ser abordada por umas 10 pessoas diferentes a perguntarem porque estava ali, portanto tive de explicar essas vezes todas que estava à espera do pica do comboio para me fazer upgrade no bilhete e me arranjar um lugar vago. Sabia lá eu quanto tempo isso podia demorar…

Comboio indiano
Comboio indiano Comboio indiano créditos: While You Stay Home

Começo a ficar muito assustada pois os olhares não são simpáticos. São quase como de desdém. Começo a pensar: e se mandam borda fora pois não paguei para estar naquela carruagem? Que vou eu fazer numa estação indiana sozinha a meio da noite? Foi o pensar em todas as coisas más que me podiam acontecer que me deixou mesmo muito nervosa.

Até que vem mais um senhor indiano perguntar-me o que estava a fazer ali sentada e, depois de mais uma explicação, diz-me para o seguir. Nem penso, sigo-o. Ele leva-me até ao sítio onde a sua família estava e diz-me para me sentar lá com eles. Nesse momento nem sei explicar como consegui não verter lágrimas. Era um misto de sensações muito grande. Sentia-me mal por estar a rogar pragas a todos os indianos e agora vem este senhor que me ajuda e a sua família é tão simpática comigo. As crianças até me ofereceram comida. Senti alívio, muito alívio por sentir que não estava sozinha e que tinha ali alguém para me apoiar com um gesto tão simples como aquele. Falei com eles em inglês pois eram fluentes, o que também me acalmou. Sentar-me naqueles centímetros de banco naquele momento foi a melhor coisa do mundo. Fiquei com eles por um bom tempo pois o pica do comboio nunca mais aparecia e já lá iam umas horas. Na verdade, ele nunca apareceu. Se não tivesse sido esta família não sei o que teria sido feito de mim…

Eles pediram ao serviçal que me havia estado a mandar olhares de ódio para me encontrar um lugar e ele lá o fez. Agradeci-lhes muito e fui para um sítio onde podia finalmente descansar e estar confortável.

Ao chegar a Calcutá, como o pica não tinha aparecido e eu não tinha feito o upgrade do bilhete, o tal serviçal de sempre vem me cobrar. Até aí tudo bem até que ele me diz o preço do bilhete. Sabia bem que esse não era o preço justo e argumentei com ele. Até lhe mostrei um print screen que tinha tirado da net com o valor do bilhete. O que mais me irrita é que todos os outros indianos à volta estavam a ver que ele me estava a cobrar bem mais, mas ninguém teve a decência de dizer nada. Discuti com ele por uns minutos até que interiorizei que aquilo não me levaria a lado nenhum e lá tive de pagar. Num acesso iluminado qualquer, lembro-me de lhe pedir o recibo. Dado isto ele foi falar com um outro senhor indiano que vem com um caderno de recibos e me dá metade do dinheiro para trás, afirmando que eu tinha pago a mais. Concluo que se não tivesse pedido o recibo, o empregado tinha ficado com o dinheiro todo para ele. Mas, ao menos, esta pessoa honesta não o permitiu.

Agora vejo que esta viagem podia ter corrido muito pior, portanto estou muito feliz com o modo como tudo se resolveu. Esta era a única experiência na viagem toda que eu mudaria: não voltaria a entrar num comboio sem um bilhete com lugar marcado.

Por Paula Carvalho, autora do blogue While You Stay Home