A Linha do Oeste serpenteia vales e colinas, mas atravessa planuras com extensas terras de vinhas e de pomares. Sente-se, nestas latitudes, a maresia atlântica e o terroir dos vinhos DOC de Torres Vedras. Para os amantes da arte fotográfica e do trainspotting, o traçado é de puro regalo para os olhos. As paisagens bucólicas e cénicas, uma das características da ruralidade, são uma constante para quem viaja nestas latitudes, particularmente, nos concelhos de Torres Vedras e do Bombarral.

Apesar de ter perdido a magia de outros tempos, esta linha de bitola ibérica encontra-se, desde 2021, em modernização e renovação das suas infraestruturas e correção do traçado, entre Sintra-Meleças e Caldas da Rainhas, para receber a tão aguardada eletrificação e, por sua vez, o novo material circulante. Desde a inauguração, há 136 anos, que esta linha não via uma requalificação de fundo para melhorar o tempo de serviço e conforto dos seus passageiros.

De Runa a Óbidos: de comboio pela Linha do Oeste
De Runa a Óbidos: de comboio pela Linha do Oeste créditos: OLIRAF

Runa: histórias de uma antiga estação

Numa manhã húmida e fresca, como são as manhãs típicas da região Oeste, faço-me à estrada pela centenária Linha do Oeste. Aguardo na antiga Estação de Runa, hoje apeadeiro, a chegada da barulhenta automotora diesel da Série 592 da CP, conhecidas na gíria ferroviária como as “Camelo”. Estas automotoras, alugadas a Espanha (RENFE) percorrem o troço ferroviário do Serviço Regional da CP, entre as estações de Sintra-Meleças e a Figueira da Foz, substituíram as antigas automotoras a diesel da CP que insistiam em parar no apeadeiro de Runa.

Runa: histórias de uma antiga estação
Runa: histórias de uma antiga estação Runa créditos: OLIRAF

Em tempos idos, estes lugares eram agitados. Trata-se uma das cinco estações de caminhos de ferro da Linha do Oeste que passam no concelho de Torres Vedras (Dois Portos, Runa, Torres Vedras, Ramalhal e Outeiro da Cabeça).

Situado fora da povoação de Runa, o apeadeiro servia o histórico e monumental Asilo de Inválidos Militares de Runa. Este edifício monumental, de traça simples e elegante, construído nos finais do XVIII e meados do XIX, foi um sonho de vida da sua mentora, financiadora e fundadora, a real figura Maria Francisca Benedita (1746-1829), filha de Dom José I de Portugal e princesa do Brasil. Em virtude da partida das Invasões Francesas e da fuga da família real para o Brasil, o Real Asilo de Runa foi inaugurado no dia do 81º aniversário da fundadora, a 25 de julho de 1827. Atualmente, o Lar dos Veteranos Militares (CASRuna) ainda serve o seu propósito de apoio social ao antigos militares que serviram Portugal e, esporadicamente, abre portas à população local para dar a conhecer o seu interior, as suas obras e o jardim envolvente.

Também para a história desta antiga estação ferroviária oestina ficam os prémios ganhos, entre as décadas de 40 e 50 do século XX, no âmbito do Concurso “Estações Floridas”, instituído em 1941 pelo Secretariado Nacional da Informação (SNI). A antiga Estação de Runa, em Torres Vedras, arrebatou o 1.º prémio no Concurso das Estações Floridas (S.N.I) em 1946,1947 e 1950. Já em 1951 e 1952, recebeu o 2.º e 3.º prémio, respetivamente. Quem diria que foi uma das estações floridas mais premiada de sempre? Os prémios de Runa são reveladores do extremo cuidado pelo espaço envolvente, em particular os jardins, dos seus funcionários e chefes de estação, nada complacente com a falta de zelo que se verifica hoje. Atualmente, é um apeadeiro em estado de (total) abandono.

Runa
Runa Runa créditos: OLIRAF

Um apeadeiro "real" em ruínas

Durante o percurso, é possível observar o apeadeiro da Macheia, por situar-se nos terrenos agrícolas de um antigo proprietário rural da Quinta da Machêa, servia para exportação da produção agrícola e, também, para a comunidade burguesa e aristocracia que se deslocava para às antigas Termas dos Cucos para tratamentos médicos e lazer. Foi o caso da família real, como D. Carlos e o próprio D. Manuel II. Daí a denominação de "Apeadeiro Real" pela população local. Hoje em dia, o antigo apeadeiro encontra-se em ruínas.

Torres Vedras: a capital histórica do Oeste

A chegada do caminho de ferro a Torres Vedras colocou definitivamente esta vila histórica na época contemporânea e na rota do progresso civilizacional. O transporte ferroviário contribuiu para o alargamento dos seus mercados agrícola, produção industrial e com o desenvolvimento do comércio local. Com o tempo, as atividades turísticas ligadas ao turismo balnear e termal começaram a florescer.

As Linhas de Torres são uma aula de História a céu aberto. Chegados às fortificadas e discretas Linhas de Torres, o “Armée du Portugal” punha fim à sua correria desde Ciudad Rodrigo (Espanha). As águias imperiais de Bonaparte ansiavam pelos celeiros e pomares da Península de Lisboa, face à pobreza da planura castelhana, da dureza das beiras e dos constantes ataques da guerrilha campesina espanhola e portuguesa.

Torres Vedras: a capital histórica do Oeste
Torres Vedras: a capital histórica do Oeste Torres Vedras créditos: OLIRAF

Na imagem acima, temos a réplica de uma peça de artilharia, instalada sobre a muralha nordeste, da Bateria do Castelo de Torres Vedras. Estava, em 1810, integrada na 1.ª Linha das Obras Militares pertencentes às Linhas de Defesa de Lisboa ou Linhas de Torres. No total, a posição do Castelo contava com treze peças de artilharia e uma guarnição de 500 homens. Permitia, conjuntamente, com os fortes de São Vicente e da Forca, o fogo cruzado sobre as estradas que circundavam o Castelo. O sistema defensivo das Linhas de Torres, constituído por fortes, redutos e baterias, encontrava-se munido de peças de artilharia de campanha e naval, fornecidas pelos arsenais portugueses e ingleses respetivamente, que submetiam a fogo de flanco todas as entradas e desfiladeiros de aproximação do inimigo.

Torres Vedras
Torres Vedras Torres Vedras créditos: OLIRAF

Anualmente, no dia 20 de outubro, assinala-se o Dia Nacional das Linhas de Torres Vedras. Esta efeméride foi criada, em 2014, para perpetuar a memória e homenagear o espírito de resistência do povo português aliada à estratégia e engenharia militar de todos aqueles que lutaram contra um dos melhores e maiores exércitos do mundo – o Napoleónico – durante a 3.ª Invasão Francesa a Portugal (1810-1811), procurando manter a independência do país, com a ajuda dos britânicos.

Outeiro da Cabeça: uma típica estação oestina

Na outra metade da Linha do Oeste, existem estações que pararam no tempo, como é o caso da estação de Outeiro da Cabeça. Situada no concelho de Torres Vedras, esta estação ferroviária serve o concelho vizinho da Lourinhã. Nesta estação destacamos, os quatro magníficos painéis de azulejos alusivos ao ex-libris do património histórico-cultural do concelho da Lourinhã, tendo como destaque, a Igreja de Santa Maria do Castelo e o Padrão Histórico da Batalha do Vimeiro (1808).

Outeiro da Cabeça: uma típica estação oestina
Outeiro da Cabeça: uma típica estação oestina Outeiro da Cabeça créditos: OLIRAF
Outeiro da Cabeça
Outeiro da Cabeça Outeiro da Cabeça créditos: OLIRAF

O interior da estação também é digno de uma visita atenta. As instalações apresentam uma antiga bilheteira e um antigo espaço para despacho e pesagem de mercadorias. Tal como a maioria das estações e espaços envolventes deste troço da Linha do Oeste, o comboio foi fundamental para escoar a produção agrícola e industrial nos finais do século XIX e XX. Ainda hoje, continua a ser muito utilizado no transporte de mercadorias como telhas e tijolos que são a principal fonte de rendimento da região.

Nas imediações, o olhar mais atento poderá focar-se num antigo ramal ferroviário, com túnel, que ligava a estação ferroviária à Quinta de São Francisco para escoar a produção vinícola por comboio. Esta quinta vinícola era uma das muitas propriedades agrícolas na região do Bombarral do empresário vitivinícola Abel Pereira da Fonseca, ainda hoje na posse da família detentora da Quinta do Sanguinhal.

Bombarral: os azulejos com tradição vinícola

Inaugurada em 1887, foi ponto de desenvolvimento para o concelho do Bombarral, pois por ela se faziam as transações de mercadorias e passageiros, de e para as povoações vizinhas. Durante muitos anos, foi o mais importante polo de desenvolvimento local, transportando os afamados produtos agrícolas locais: o vinho e a pera-rocha. Ainda hoje, existe um depósito de água do século XIX, o mais antigo da linha do Oeste.

Bombarral: os azulejos com tradição vinícola
Bombarral: os azulejos com tradição vinícola Bombarral créditos: OLIRAF

Durante a Implantação da República, a 5 de outubro de 1910, a estação ferroviário foi palco de uma intensa atividade. A 3 de outubro, os republicanos bombarralenses cortaram a linha férrea para impedir a passagem de eventuais reforços militares de apoio à monarquia constitucional (1834-1910). A vitória do golpe de estado, de cariz republicano, na capital do reino foi festejada com entusiasmo pela população na vila. A região Oeste tinha uma forte presença das elites políticas republicanas na comunidade local.

Os painéis de azulejos das estações da Linha do Oeste também merecem destaque. A estação ferroviária do Bombarral é uma das paragens obrigatórias. Com um património azulejar riquíssimo da autoria de Jorge Pinto, azulejos da fábrica Arcolena Lisboa (1930) e com elementos imagéticos que retratam paisagens bucólicas deste concelho oestino: camponeses, bestas de carga, tradições e trabalhos rurais, representando cenas do quotidiano vitivinícola da região Oeste. Consideradas um magnífico cartão de boas-vindas para os passageiros e visitantes que chegam ao Bombarral por transporte ferroviário. A maioria do património ferroviário azulejar da Linha do Oeste é de visita obrigatória mesmo para quem não vai apanhar o comboio, visto que estão integrados nos roteiros turísticos.

Bombarral
Bombarral Bombarral créditos: OLIRAF

Não deixe de ir à antiga estação de São Mamede, entre o Bombarral e Óbidos, hoje em profunda mudança em virtude das demoradas obras de renovação da Linha do Oeste. Nas proximidades, visite a aldeia da Roliça. Foi na planície da Roliça e nas colinas da Columbeira, a 17 de agosto de 1808, que ocorreu a conhecida Batalha da Roliça (1808), tendo como protagonistas os britânicos, de Wellesley, e milícias portuguesas contra uma divisão do Grand Armée de Bonaparte, comandado pelo General Delaborde. Tratou-se do primeiro confronto militar entre o exército britânico e o exército francês em Portugal que, a 21 de agosto de 1808, iria culminar na derrota das hostes franceses de Junot nas colinas do Vimeiro. O princípio do fim da I Invasão Francesa (1807-1808) era uma questão de tempo.

Óbidos: o secular castelo medieval altaneiro

Chego ao meu destino: Óbidos. Antes de entrar pela muy nobre e sempre leal Vila de Óbidos, subindo a vertente escarpada do castelo, opto por fazer uma pequena caminhada até à Ermida de Santo Antão para contemplar a paisagem envolvente da centenária estação e a vastidão da Várzea da Rainha. Hoje, a hortofloricultura e fruticultura florescem no lugar onde, em tempos idos, os baixios lagunares chegavam ao sopé da vila medieval de Óbidos.

Decorada, como grande parte das estações de caminhos de ferro do nosso país, com belos e simples azulejos (da autoria de José Vitória Pereira, datados de 1943 e saídos dos fornos da fábrica da Viúva Lamego), que mostram os diversos ex-libris do concelho de Óbidos, onde se inclui o burgo medieval, as muralhas circundantes, a porta da vila, o pelourinho e, claro, o castelo.

Óbidos
Óbidos Óbidos créditos: OLIRAF
Óbidos
Óbidos Óbidos créditos: OLIRAF

Viajar na Linha do Oeste permite-nos imaginar como seriam estas antigas estações ferroviárias no final do século XIX e XX. A estação de Óbidos, apesar do seu estado de abandonado e degradação, é uma poucas que detêm um antigo armazém e cais de mercadorias de madeira e telha. É um dos poucos existentes na Linha do Oeste (a estação de Dois Portos, em Torres Vedras, também tem um armazém da mesma tipologia) e que resiste ao abandono do homem e à degradação natural da passagem do tempo.

Na Idade Média, reinava a lei do (castelo) mais forte. Óbidos é senhora e rainha de um longo e majestoso castelo medieval e de abundante casario intra-muros, típico da antiga província histórica da Estremadura. É uma das 7 maravilhas de Portugal (Património Monumental) e considerada a joia turística da região Oeste. Centenas de milhares de pessoas visitam e caminham na sua icónica e colorida Rua Direita. O imaginário medieval ainda resiste e persiste, tal como estes “Guerreiros de Pedra” resistiram a inúmeros cercos, batalhas e escaramuças ao longo da sua milenar História.

Óbidos
Óbidos Óbidos créditos: OLIRAF

Esta vila medieval nutre um grande amor pelos livros. Perca-se nas ruas e becos desta vila literária. Desde 2015, o FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos movimenta milhares de pessoas pelas sinuosas e estreitas ruas desta vila à descoberta das melhores livrarias, palestras e encontros com escritores. Um dos muitos atrativos de Óbidos são as suas livrarias que combinam com o espaço envolvente. É a simbiose perfeita entre livros e o património. A nossa sugestão vai para a Livraria do Mercado e para a Livraria Santiago, localizada na antiga Igreja de São Tiago.

De volta a casa. Próxima estação: Runa.

Artigo originalmente publicado no blogue OLIRAF