A porta da despensa quase não fecha por estar a abarrotar, na cozinha preparam-se as primeiras refeições para a tripulação (nesse dia ao almoço, frango no forno com arroz de cenoura) e nas cabines as toalhas em cima das camas feitas já esperam os futuros ocupantes. A bordo do veleiro Santa Maria Manuela, na passada quarta-feira, parecia estar tudo a postos para a partida em direção aos Açores, onde vai receber os primeiros passageiros após uma profunda renovação encetada durante a pandemia.
"O ambiente é de alguma expetativa", diz-nos o comandante do navio, Artur Ribeiro. "Temos um navio completamente renovado e queremos mostrar a toda a gente porque continua a navegar por mais 80 anos", afirma.
A história do Santa Maria Manuela começa em 1937, nos estaleiros da Companhia União Fabril (CUF), em Lisboa. Passou boa parte do século XX ao serviço da pesca do bacalhau nas águas geladas do Atlântico Norte, até ser salvo da sucata (apesar da aparência, o casco é todo em aço), e chegar, em 2016, às mãos do seu atual proprietário, uma empresa do Grupo Jerónimo Martins.
A pesca de bacalhau deu lugar ao turismo marítimo, com a realização de expedições marítimas de média duração, sobretudo nos Açores e na Madeira.
Férias práticas
Durante a viagem, os hóspedes (como são designados os passageiros) são convidados a participar em todos os aspetos da navegação à vela. "Temos a ponte sempre aberta a quem quiser espreitar e fazer perguntas sobre o nosso trabalho", explica o oficial de navegação João Fernandes. O grande leme de madeira na popa do navio não é adereço e manobrá-lo é uma das atividades mais populares a bordo. "Assim que temos alguém a segurar no leme, aparecem logo mais 5 ou 6 pessoas a querer fazer o mesmo", conta.
"Tentamos dar a melhor experiência aos nossos hóspedes", diz o jovem piloto, que classifica como "incrível" o espírito de companheirismo que acaba por se gerar no veleiro entre tripulação e passageiros. "Quando chega ao fim, ninguém quer que a viagem acabe", assegura.
Na cozinha, dizem-nos o mesmo, apesar da grande responsabilidade que é ter de preparar três refeições por dia para 60 pessoas (40 hóspedes e 20 tripulantes). Aqui, ao final de cada manhã, já se está a preparar o jantar do dia seguinte, devido à necessidade de trabalhar com muitos alimentos congelados.
Por dentro, um navio como novo
Na marina do Parque das Nações, em Lisboa, a tripulação carregava os últimos mantimentos para a viagem até à ilha Terceira e parecia entusiasmada por mostrar o resultado da renovação levada a cabo no último ano num estaleiro holandês. O histórico veleiro irá passar julho e agosto no arquipélago açoriano (onde uma viagem de 7 dias com tudo incluído começa nos 1.050€), antes de regressar a Lisboa em setembro.
"É um alívio termos terminado a renovação", admite o comandante Artur Ribeiro. "Depois de dois anos sem navegar, chegarmos finalmente à altura de começarmos a trazer pessoas de fora para o navio, para poderem voltar a ter experiências únicas como tinham antes, é mesmo um sentido de alívio de trabalho cumprido", garante.
É no interior que as melhorias introduzidas pela renovação são mais visíveis. "Antes tinha o aspeto de um navio de treino, que era confortável, mas não tinha este nível de conforto", descreve o comandante. Com efeito, o espaço reservado às cabines dos passageiros assemelha-se agora mais ao interior alcatifado, suavemente iluminado e decorado de um hotel. Os passageiros do SMM podem escolher entre cabines para duas pessoas ou partilhadas (cada uma tem quatro camas em beliche), equipadas com ar condicionado e WC.
A comparação entre o antes e o depois estende-se ao Salão Terra Nova, descrito como "o coração do navio" por ser o maior espaço interior de convívio. É aí que são servidas as refeições e que os hóspedes podem assistir à exibição de filmes ao final do dia. O renovado salão faz agora mais justiça à ementa gourmet que é servida a bordo (na qual não falta, dada a história do navio, o bacalhau).
Ganhos de sustentabilidade
No exterior, a maior transformação ocorreu ao nível do próprio convés, que foi totalmente levantado e substituído por outro material com melhor impermeabilização e isolamento térmico. Tal como nas nossas casas, evitar grandes oscilações de temperatura no interior do navio traduz-se numa menor dependência do sistema de climatização e na redução do respetivo consumo energético. "Foi difícil, porque tivemos de assegurar que o novo revestimento se integrava com a tradição deste navio e que se conseguia mexer", conta Artur Ribeiro. "Como o navio é todo em aço, encolhe com o frio e expande com o calor, pelo que o convés pode abrir brechas, se não acompanhar o aço e não for bem instalado", explica.
Sobre a paragem forçada pela pandemia, o comandante do SMM afirma que "queríamos navegar, mas já que estávamos parados, optámos por evoluir e transformar o navio naquilo que o nosso armador tinha em mente. Temos essa carga pesada do património português e da história portuguesa neste navio, mas quisemos trazer os seus sistemas, nem é para o presente, mas para o futuro, através da adoção de soluções mais limpas e ecológicas".
Artur Ribeiro está aos comandos do Santa Maria Manuela desde abril de 2018 e destaca o contacto com um público sempre curioso e fascinado com a vida no mar como uma das principais recompensas do seu trabalho. "Tudo o que promovemos a bordo, seja ensinar andar à vela, praticar mergulho no meio do oceano ou percorrer os Açores e a Madeira, são experiências únicas. Podermos passar este gosto que temos de andar aqui para as pessoas que vêm cá viajar connosco, e ainda lhes dar uma experiência única, é muito recompensador", garante.
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