Várias coisas podem causar uma expressão de espanto a uma criança de um ano: um brinquedo novo, um escorrega longo e colorido ou a acrobacia de um cão.  Nunca um monumento. Foi assim com grande estupefação que ouvi a minha filha, de 13 meses, soltar um prolongado “uaaa” assim que chegámos aos últimos degraus da escadaria do Coliseu de Roma e vislumbrámos as bancadas da mais famosa sala de espetáculos que o mundo já conheceu. Ainda demorou uns segundos de queixo caído. Talvez porque o anfiteatro remeta exactamente para o que mais entusiasma uma criança – a diversão. Ou então porque preserva há quase 2 mil anos uma grandiosidade ímpar que não lhe foi arrancada nem com a erosão dos séculos, nem com guerras ou terramotos, ainda menos com o saque do seu recheio ou do mármore que o revestia.

coliseu de roma

Ainda é possível imaginar 65 mil almas a encherem o estádio, o barulho ensurdecedor, feras assustadas e gladiadores suados a saírem do porão, podemos vestir a pele do imperador pisando o púlpito de onde sinalizava o seu veredito: vida ou morte. Um poder dos deuses só atingível através do pão e do circo, o entretenimento do povo da capital do império. Até se faziam batalhas navais com recurso à inundação da arena através de um sofisticado sistema de aquedutos. Só nos jogos inaugurais estima-se que ali morreram 9 mil animais e 2 mil gladiadores. Vinham dos quatro cantos do domínio; leões de África, caravanas das Arábias, escravos de Cartago. Também hoje, ao Coliseu acorrem homens e mulheres de todos os continentes, desta feita de telemóvel em punho, capturando através da fotografia cada pedra da sua existência.

A dádiva de Roma ao turista é que mesmo que se inicie a viagem pelo seu maior ícone ficam ainda por visitar incontáveis relíquias. Talvez nenhum outro lugar no mundo se encaixe tão bem no termo “museu a céu aberto”: Roma e arredores reúnem seis locais carimbados pela UNESCO como Património da Humanidade, sendo que o centro histórico de Roma conta como um todo. Outro, como não podia deixar de ser, são as propriedades da Santa Sé no Vaticano.

vaticano

Dependendo do tempo disponível, o Vaticano pode ser visto em uma hora, um dia ou uma vida inteira. Uma hora dá para ver a Praça de São Pedro e, aos domingos, avistar o Papa Francisco na varanda mais poderosa do planeta. Um dia de correrias poderá dar para visitar os Museus do Vaticano, a Capela Sistina e subir à cúpula da Basílica. Uma vida inteira pode não chegar para ver com a merecida atenção cada uma das peças do maior edifício religioso do mundo, erigido sobre o túmulo de Pedro, o primeiro apóstolo.

Como já tinha visto os museus, optei desta volta por subir as escadas da Basílica com a minha filha ao colo, chegando ao topo com uma dor de costas atenuada apenas pelo encanto da nave, resultado da mistura dos génios de Bramante, Rafael, Miguel Ângelo, Bernini e Madernom, e pela inebriante vista sobre a cidade eterna. É Roma até ao fio do horizonte, com as ruínas enredadas em palacetes, o ocre e o vermelho dos prédios a estenderem-se para lá da praça circular, colunas, jardins e estátuas serpenteadas pelo leito do Tibre.

Roma faz-se a pé, embora correndo o risco de ficar com bolhas nos pés. Um primeiro passeio terá de passar obrigatoriamente pelo Panteão – o monumento da Roma Antiga que melhor envelheceu, mantendo-se quase igual desde que o imperador Adriano o fundou em 120 d.C. E pela mágica Fonte de Trevi imortalizada por Fellini, a umas centenas de metros da magistral scalinata da Piazza di Spagna, onde os melhores estilistas e as modelos mais formosas desfilaram as tendências da moda global.

fonte de trevi

Mas estas dicas qualquer um lhe pode dar. Outras não. Só os romanos. Felizmente, um dos meus melhores amigos, o Mirko, nasceu na região de Roma e, apesar de viver em Lisboa há 13 anos, não há nada que o encha mais de orgulho do que a sua origem. O Mirko torce pela Lázio, atira o comando à parede quando a squadra azzurra sofre um golo, só bebe bicas curtas, não tolera ananás nas pizas e costuma argumentar que só falamos como falamos porque outrora fomos anexados pelas legiões dos seus antepassados e pela sua língua franca, o latim. Talvez haja só uma coisa de que ele se orgulhe mais do que da beleza de Roma: da comida de Roma. E eu tenho constantemente de apelar à humildade do seu palato. Para me convencer, o Mirko enviou-me a dois restaurantes e a um café. E se eu soubesse que ele não iria ler este texto provavelmente reconheceria que foi espectacular. Assim, vou ter de continuar a dizer que foi assim-assim e que não se compara a um cozido à portuguesa.

spritz
créditos: Missvain /CC BY 4.0

Antes da pasta, paragem no pequeno bar Bukowski, em Trastevere, o bairro ribeirinho que melhor serve as noites romanas. Spritz, evidentemente – 6cl de vinho proseco, 4cl de Aperol e um dedal de água gaseificada, rodela de laranja ou azeitona, ingredientes para o aperitivo mais saboroso e com a cor mais cool de todos os tempos. Terá vindo da Áustria, tornou-se grande em Veneza e agora bebe-se em todas as esplanadas italianas. Estômago aberto e caminhada para o número 29 da Via dei Vascellari, morada da trattoria Da Enzo, cabeça de lista das sugestões do Mirko: «Pede carbonara e vais ver que não é cremosa, porque não se mete, nunca, mas nunca, natas na carbonara», avisara.

Há fila e é preciso deixar nome na lista. Pretexto para uma cerveja Moretti. O Da Enzo é tudo o que se pede num restaurante em Roma: viela estreita, motorizadas Vespa estacionadas à porta, ambiente simultaneamente romântico e vibrante, empregados atenciosos, vivaços e divertidos. A escolha não tem nada que saber: para entrada, fiori di zucca (flor de curgete frita), carbonara para prato principal e tiramisú de sobremesa. A acompanhar, vinho tinto. Os vegetarianos podem optar pela pasta cacio e pepe, um clássico da cozinha romana, esparguete com queijo pecorino e pimenta preta. Vinte e cinco euros por pessoa: dinheiro que não paga apenas a comida, mas também uma experiência de vida. A partir do Da Enzo, um tiramisú tem de suar muito para conquistar esse nome, nunca mais vai olhar para uma curgete sem se queixar de não ter flor e nem um pingo de natas vai voltar a querer na sua carbonara.

pizza

Cioso da sua gastronomia, o meu amigo romano não quis correr o risco de que eu comesse uma piza feita às três pancadas para turistas. Assim, recomendou-me a Emma, uma pizzeria perto do Largo di Torre Argentina, onde minutos antes vi um dos inúmeros gatos que deambulam junto deste conjunto de ruínas a cravar as garras na bochecha de uma turista russa que o tentava apanhar. Um episódio desagradável que, ainda assim, não roubou o apetite para as pizas que se seguiram. A minha namorada ainda hoje me fala da pomodorini e rughetta (tomatinhos e rúcula) que lá comeu. Era ainda mais gostosa do que a minha funghi (cogumelos), o que me arreliou, porque normalmente escolho sempre melhor. Massa fina, ingredientes frescos e um toque italiano que não se sabe bem de onde vem e que faz com que as suas pizas sejam superiores às que o resto do mundo tenta imitar.

Ainda não falámos de café. Opino que não há cafetarias na Europa que sirvam melhores cafés do que as italianas e as portuguesas. Ponto. Mas os portugueses adaptam-se melhor aos cafés de outras coordenadas, mesmo que saibam a água da sanita. Os italianos, ao invés, são do mais picuinhas: ou está demasiado quente, ou demasiado frio, ou a chávena ferve, ou está queimado ou, quase sempre, demasiado longo. Pedem uma bica curta, na gíria lisboeta, uma italiana.

Fui ao Caffe Sant'eustachio, perto do Panteão, tirar a prova dos nove: ali os grãos de café são tostados na casa e até a água vem dum aqueduto antigo. O sabor e a textura são imbatíveis. Mas o espresso é tão minorca que mal dá para se misturar com a saliva. Estive para pedir uma portuguesa, ou seja, para dar mais um cheirinho na chávena. Claro que qualquer italiano se defenderá argumentando que aquele sabor e aquela textura só são atingíveis precisamente por o café ser curto. E por a água ser de Roma, por suposto. Uma boa alternativa é o Greco, fundado em 1760, onde as bocas de génios como Ibsen, Hans Christian Andersen, Goethe e até os concorridos lábios de Casanova beijaram as chávenas.

Jardim das Laranjas Roma

O meu bloco de notas estava cheio de recomendações e não descansei enquanto não as percorri todas. No Giardino degli Aranci (Jardim das Laranjas), um parque romântico onde jovens casais italianos vão roubar os primeiros bacci (beijos), situado na Colina Aventina, presenteei a minha namorada e a minha filha com mais uma vista panorâmica e deslumbrante sobre a urbe. A meia dúzia de passos, num Palácio dos Cavaleiros de Malta, está o Bucco della Serratura, um invulgar buraco de fechadura, onde uma espreitadela escrutina precisamente a cúpula da Basílica de São Pedro – parece que foi concebido a régua e esquadro. Não muito longe fica o mercado de Porta Portese, a Bocca della Veritá e o grande descampado onde outrora pontificou o Circo Massimo, colado às velhas muralhas.

Mais afastado do centro, conectado pelos autocarros 118 e 218, o Parque Regional da Ápia Antiga é atravessado pela Via Ápia, a artéria principal do tráfego do império romano, por onde passavam exércitos e mercadorias de e para a metrópole. A estrada, feita com blocos negros e ladeada por muralhas e casas velhas, faz-nos recuar no tempo. É uma zona verde, ideal para passeios a pé ou de bicicleta, com paragens obrigatórias nos vestígios de aquedutos e nas catacumbas de São Calisto e de São Sebastião. Roma é das cidades europeias com mais espaços verdes, embora não pareça quando não se sai do centro histórico.

Antes da partida, fiz uma visita ao Valerio, um amigo que viveu em Lisboa e regressou à sua Roma natal para trabalhar num negócio da família. Valerio é tão romano como o Mirko, com a diferença de ser fã da AS Roma, o clube rival da Lázio.  Encontrámo-nos no Mercado de Testaccio, bairro de fundação do clube da loba, uma praça coberta com cem bancas quase todas elas dedicadas à gastronomia local; uma explosão de aromas e sabores com legumes frescos, pecorino e gorgonzola, vários géneros de salami e pizas. Servimo-nos de sandes bem recheadas no Mordi e Vai (banca 15), onde figuram estrelas da cozinha romana como as almôndegas, as tripas e o rabo de boi. «Há cada vez mais italianos a abandonarem o país por falta de trabalho», diz Valerio, no decorrer da conversa. «Até aos anos 90, vivia-se muito bem nesta cidade. Toda a gente tinha um negócio próprio, a economia era pujante, não havia desemprego. Agora a crise está instalada».

almôndegas

A decadência de Roma é visível. Desde a minha primeira visita, em 2008, a cidade deteriorou-se bastante: o trânsito é infernal, a mobilidade nos passeios esburacados é sofrível, há lixo acumulado, edifícios a necessitar de restauração, os transportes estão obsoletos e degradados. Há mais sem-abrigo e muitos imigrantes dependentes da economia paralela.

Foi uma década em que a capital italiana se deixou agarrar pelos tentáculos da máfia, tremeu com a crise financeira, viu partir muitos dos seus cérebros mais jovens, não teve capacidade para integrar um tremendo afluxo de refugiados e imigrantes, foi governada por uma classe política corrupta e incompetente. Resultado: a umas semanas das eleições os favoritos eram os nacionalistas da Liga e os populistas do Movimento Cinco Estrelas, seguidos pela Força Itália de Silvio Berlusconi. Liga e Cinco Estrelas formariam governo, permitindo a ascensão de Matteo Salvini, um fascista, à pasta do Interior. Hoje, a iluminada Itália é um país que deixa refugiados afogarem-se no Mediterrâneo e que prende quem os ajuda. Em Roma, quando chove com intensidade, gente morre nas inundações. Trinta e três por cento dos jovens estão desempregados.

fórum romano

Num último passeio pelo maravilhoso Fórum romano – uma cidade do passado debaixo da actual – dei por mim não a imaginar como seria a vida nos mais gloriosos dos seus tempos, mas como terá acontecido a queda de tão majestoso império. As invasões bárbaras iniciadas no século IV precipitaram o fim de uma sociedade em declínio, marcada pela crise económica e pelas disputas entre os militares.

Em alguns momentos, os clãs germânicos conseguiram mesmo chegar a Roma, inflingindo-lhe destruição e caos: em 476, o líder dos Hérulos, Odoacro, destronou o último imperador romano Rómulo Augusto, pondo fim ao Império Romano do Ocidente e inaugurando a sociedade medieval. Ainda assim, Roma aguentou. Preservou as suas pedras fundadoras e a sua simbologia. Muitos romanos sabem, não obstante, que o risco para a cidade não vem do estrangeiro, mas da degradação das suas cortes. Os inimigos estão dentro das muralhas, conspiram no Senado, no fórum, no patriarcado. Roma aguentará. É eterna, imortal.

Aproveite os voos da TAP, porque vale mesmo a pena conhecer Roma.

Texto: Tiago Carrasco