“Para essas pessoas o livro é um objeto de culto. Como uma dedicação, veem um livro como uma relíquia. O que têm ali é um amigo incansável, sempre disposto a ser consultado. Não mente. Diz sempre a mesma coisa, não altera a opinião de acordo com as circunstâncias. O livro é dos amigos mais fiéis que temos.”
O ambiente também é diferente de uma vulgar livraria. Há uma maior predisposição para a conversa sobre algumas edições e o prazer da leitura. O próprio João Soares induz esse ambiente com a voz cordial e interessada em satisfazer a curiosidade de quem entra.
Os livros transportam ainda uma grande diversidade de temas que ajudam à conversa e que, por vezes, até leva os visitantes a sentarem-se, no caso de haver uma cadeira vazia.
Nem sempre porque “eu tenho uma pequena maroteira. Como é uma livraria todo o espaço está preenchido com livros. Até as cadeiras. Porque, se estão livres, as pessoas sentam-se e conversam e eu não consigo fazer negócios porque estou ocupado.”
A maroteira é resultado de uma longa experiência. João Soares é alfarrabista há 22 anos e só recentemente mudou para a rua Formosa. A sua atividade foi quase toda na rua das Flores, também no Porto, mas teve de mudar devido às pressões do mercado imobiliário.
Mudou de lugar milhares de publicações mas manteve o prazer do contacto com os livros, mesmo quando não há negócio. “Sou reformado bancário, não dependo da venda de livros. Mas dá-me um prazer imenso, um enorme gozo arranjar um livro que uma pessoa procura há imenso tempo ou obter para ela um livro que gosta e que nunca ouviu falar.”
Uma relação que começa a ser tão profícua como os enredos dos livros que estão nas estantes – “tenho milhentas histórias de coisas agradáveis que se passaram na minha vida como alfarrabista”.
Há quem entre na livraria porque está de passagem mas outras vão à procura de algo concreto. De livros que ouviram falar, “outros para matar saudades sobretudo da instrução primária e há os que estão atrás do egoísmo que é o colecionador.”
João Soares diz que também há muitos jovens que vão à livraria à procura de algumas publicações, em particular para doutoramentos.
Não é apenas o livro que não mente. João Soares também consegue ler no rosto dos seus clientes a reação pela passagem na livraria, o encanto pelos livros ou simplesmente pelo sucesso da procura. “Vê-se pela cara da pessoa. Pela satisfação que manifesta, pela alegria do olhar, pelo regozijo e pela forma como fica comovida e agradecida.”
No testemunho de João Soares, o livro é um dos mais fiéis amigos que temos. Mas, no seu caso, a inversa também é verdadeira e ele próprio o diz com entusiasmo: “A magia é a leitura. Para mim é tão importante que eu já fui um grande fumador e só tinha duas situações em que não fumava: quando dormia e quando estava a ler. A leitura para mim é algo que me passa para outra dimensão, vou para outro lado e vou encantado.” A transposição para um outro mundo não é num universo específico, “leio um pouco de tudo". "Confesso que sou ignorante mas tenho grande prazer na leitura e no conhecimento.”
Quem lhe apresentou o livro de quem ficou eternamente amigo foi o pai em 1955. “Foi quando entrei para o primeiro ano do Liceu Alexandre Herculano. O meu pai fez-me o favor de me oferecer o primeiro livro usado. Vacinou-me. Deu-me um produto que me transtornou e eu fiquei assíduo. Aos 15 anos eu teria já lido mais ou menos metade do que Júlio Verne escreveu.”
O “transtorno” continua e todos os dias tenta vacinar alguém que procura um livro na sua livraria. Como os livros não mentem, estão sempre disponíveis na rua Formosa e são dos nossos mais fiéis amigos. O mais difícil é encontrar uma cadeira vazia.
O livro não mente e é amigo do alfarrabista João Soares faz parte do programa da Antena1, Vou Ali e Já Venho, e a emissão deste episódio pode ouvir aqui.
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