Tive essa oportunidade na Biblioteca do Palácio Galveias em Lisboa e confesso que fiquei com um enorme problema. Como narrar a vivência, a densidade que António Fontinha transmite!
Ele não conta a história. Ele vive a história e leva-nos na mesma viagem. "Em toda a minha carreira de contador de histórias o caminho é para aí. Há teorias sobre esse assunto que coloca que o importante não é contar a história é que aquele momento aconteça.
Os anos vão passando, já vão quase 30 anos de carreira como contador de histórias, e de facto eu avanço cada vez mais para esse ponto, nós estamos aqui uns com os outros. A história é o objeto que me ajuda a fazer esse caminho."
António Fontinha é tímido a conversar. Em tom baixo, pausado e "para dentro". Em cena é completamente diferente. Transcende-se.
Começa por estudar a audiência, com uma abordagem ligeira, observa-nos, interage e leva-nos para o seu caminho. Ele próprio o salienta numa perspectiva mais metódica: "a primeira coisa é sentir a atenção das pessoas, depois tenho de conseguir buscar caminhos para que aquele momento seja útil, no sentido de importante, válido. Então, foco-me completamente nas pessoas que estão à minha volta e procuro ser válido."
É nesta interação que mais se sente a forma como se envolve na história, a força, a emoção, o drama ou o riso. "Eu acho que não sou apenas eu. Qualquer contador de histórias dá-se completamente no ato de contar. Isso é natural. Eu, ao contar histórias, se estiver bem, pleno, a 100% a partilhar, o que às vezes não é fácil porque queremos dar, mas temos muitos entraves humanos à partilha, porque não estamos bem naquele dia... Mas quando nos damos plenamente, há um alvo e esse alvo não é fácil de atingir. Agora, é muito importante nós estarmos 100% naquele sítio e naquele momento."
E o momento é de contágio, de uma total partilha de vivências.
Tudo ganha força para captar a nossa atenção. A assistência é como se fosse um personagem do conto. Partilha o enredo. Uma mulher dá um salto quando António Fontinha sobe o tom de voz. Sente-se o fluxo. Estamos todos conectados.
Ele sabe e percebe porquê. "Eu acho que é um elo, as pessoas confiam em mim. Da mesma forma como eu tenho de estar completamente dedicado com quem está à minha volta e estamos a fazer acontecer um momento que é ao nível do imaginário. Isso é o trabalho do contador de histórias. Tem de acontecer alguma coisa naquele momento, naquela hora, naquele instante, no contexto daquele encontro. Se isso não acontecer o contador de histórias esteve menos presente do que deveria ter estado. Essa é a minha demanda."
Há quase 30 anos que António Fontinha vive as histórias com quem aparece nas escolas, bibliotecas, salas de aula ou de teatro... Ele é um andarilho. Não tem pouso certo e temos de o procurar, como sucede com os restantes contadores de histórias. De certa forma, foi pioneiro em Portugal.
É a referência dos contadores de histórias, mas ele diz que a sua escola foi a estrada. "A minha experiência é estrada, estrada... Agora há muita gente que me olha e diz “ah! Vê-se mesmo que ele era ator. De facto, eu fiz formação de ator e tinha um corpo e uma voz trabalhada para ator e são duas competências úteis para um contador de histórias. Mas, como eu fiz esse caminho, olho para ele por dentro e digo 'não'. Quando comecei a contar histórias a vida mudou. Deixei de ser ator e passei a ser contador de histórias. Eu conheço outros contadores de histórias que não têm formação de ator, não precisam de ter a voz ou o corpo que eu tenho para fazer acontecer o mesmo que eu procuro fazer acontecer. A estrada foi, sem dúvida, a minha mestre."
A outra escola é o conto tradicional. O nosso imaginário revelado pela narração oral preenche quase todo o seu repertório que, em muitos casos, é recolhido por António Fontinha e que ele sublinha como "muito importante porque foi a minha “escola”.
Foi tentar perceber o que ainda havia na memória e do que sou herdeiro ao nível da tradição oral, qual é o património, o objeto que eu reutilizo. Até hoje continuo com esse objeto.
Por vezes pego num conto de autor mas são demandas muito específicas, desafios muito específicos, porque o comum é o conto tradicional e é aquilo que vou ouvindo e reutilizo".
Através do trabalho de campo que realiza conclui que este património começa a rarear, "está muito olvidado. Uma das minhas utilidades é reabilitar. Eu já vivi situações fantásticas nesse caminho de recolher contos.
De estar com o gravador na mão e de viver situações do tipo: cheguei, visitar uma senhora pela terceira vez e de repente aparece o filho dela. Ela tinha 91 anos e o filho tinha mais de 60 e trazia pela mão uma neta. Ele disse à neta para ficar à beira da bisavó “porque eu quero que tu ouças as histórias que o teu avô começou a ouvir quando tinha a tua idade. Eu estava com o gravador na mão e fiquei estarrecido. Aquela criança, com cerca de 3 ou 4 anos, nunca tinha ouvido a bisavó que era um poço de contos, sabia muitos."
Alguns dos contos tradicionais foram editados em livros e são igualmente uma forma de preservar um fabuloso património da narração que está muito esquecido.
É graças ao esforço dos contadores de histórias, essencialmente nas últimas duas décadas, que alguns destes contos continuam a ter vida junto de jovens e adultos em quase todo o país. E, neste aspeto, quase todos reconhecem o impulso embrionário de António Fontinha.
O génio do contador de histórias António Fontinha faz parte do programa da Antena1, Vou Ali e Já Venho, e a emissão deste episódio pode ouvir aqui.
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