A Michele Mamede é natural do Brasil e trabalha como guia de viagens de bicicleta em Lisboa. Colocámos-lhe algumas perguntas por escrito sobre o seu percurso como viajante em duas rodas e os desafios que associa a esta maneira de percorrer o mundo.

Em primeiro lugar, o que podemos ficar a saber sobre ti?

Olá, sou a Michele, sou sócia da Oficina 35, uma loja/oficina de bicicletas em Lisboa e, depois de ter um burnout a trabalhar em um banco, hoje trabalho como guia de viagens de bicicleta. Sou formada em Jornalismo, mas deixei de exercer a profissão desde que me mudei para Portugal, no final de 2018. Praticamente todos os amigos que conheci em Portugal entraram na minha vida por causa da bicicleta. Tenho um blog que atualizo sem qualquer periodicidade com alguns relatos de viagens e de outras atividades ao ar livre.

Como é que a bicicleta encaixa na tua vida?

Costumo dizer que redescobri a bicicleta aos 28 anos. Aceitei o convite de uma amiga para me juntar à Bicicletada, como é chamada a Massa Crítica no Brasil. Trata-se de um evento que ocorre em diversas cidades do mundo no qual ciclistas ocupam as ruas como forma de pedir respeito e de divulgar a bicicleta como meio de transporte. Na época, nem tinha bicicleta e foi um amigo dessa amiga que me emprestou uma. Em seguida, fui passar férias em Helsinki, onde usava a bicicleta de uma amiga para me deslocar pela cidade, e foi essa experiência que me animou a trocar o metrô lotado pela bicicleta para ir ao trabalho em São Paulo. Depois disso e aos poucos, fui conhecendo pessoas, fazendo amigos e descobrindo novas formas de usar a bicicleta. Além dos deslocamentos urbanos, comecei a fazer provas de longa distância, os chamados brevets dos randonneurs nos quais há uma distância a ser percorrida em um tempo pré-estabelecido, sendo indiferente chegar em primeiro ou em último lugar desde que o limite não seja ultrapassado. Entre um brevet e outro comecei a fazer viagens de bicicleta e lá se vão 13 anos desde que a bicicleta voltou a estar constantemente presente na minha vida.

Há quanto tempo viajas dando primazia à bicicleta? E qual foi a maior viagem que já fizeste em duas rodas?

A minha primeira viagem de bicicleta foi em 2012, quando um amigo organizou uma viagem para fazer o reconhecimento do percurso de um brevet. Na época, eu pedalava uma bicicleta dobrável com rodas aro 20” e subi uma serra de 20km numa região montanhosa no Brasil. Gostei tanto que passei a planejar viagens de bicicleta em fins de semana, feriados e nas férias do trabalho. Pedalei 500km para visitar minha família no interior do Estado de São Paulo, fui conhecer o Jalapão (uma região lindíssima no norte do Brasil chamada de "deserto" devido à baixa densidade populacional), explorei diversas estradas na região da Serra da Mantiqueira, uma cadeia de montanhas de 500km de extensão que é um dos meus lugares favoritos no mundo.

A maior viagem em termos de quilometragem foi uma volta de 12 dias pela parte norte da Patagônia. Foram cerca de 700km saindo de Puerto Varas no Chile, passando pelo Parque Pumalín, cruzando para a Argentina a partir da vila de Futaleufú e terminando em El Bolson. Porém, a viagem mais marcante até hoje foi pela chamada Avenida dos Vulcões no Equador e digo isso tanto pela beleza das paisagens quanto pela exigência física do roteiro. Foram pouco mais de 300km em 10 dias, mas saímos dos 2850m de altitude de Quito e passamos da cota dos 5 mil metros na região do vulcão Chimborazo. Seguimos por estradas pouco movimentadas e era comum subirmos mais de mil metros de acumulado em 30km para descermos tudo em apenas 15km.

Michele Mamede
A Michele a viajar de bicicleta no Parque Nacional Cotopaxi, no Equador créditos: Michele Mamede

Que vantagens e desafios vês associados a esta forma de viajar?

Uma das coisas que mais gosto nesta forma de viajar é como a bicicleta é uma forma de aproximar as pessoas, ela desperta curiosidade e pode render ótimas conversas e também alguns gestos de simpatia. Ao pedir informações sobre hospedagem em um café na região da Serra da Estrela, recebemos um convite para acampar no quintal da casa de uma família e, em outra ocasião, também fizemos amizade com outros ciclistas que percorriam o mesmo caminho durante um feriado de Carnaval. A bicicleta também quebrou o gelo quando dois policiais pediram nossos documentos num vilarejo do Equador e um deles ficou super animado ao ouvir que estávamos a viajar de bicicleta e nem olhou mais para os nossos passaportes.

Uma das coisas que mais gosto nesta forma de viajar é como a bicicleta é uma forma de aproximar as pessoas

Sobre o maior desafio, considero que seja a capacidade de lidar com imprevistos. Para minimizar problemas, o planejamento é importante e inclui uma boa revisão da bicicleta, saber trocar um pneu furado, levar roupas e equipamentos adequados, informar sobre os planos e dar notícias a uma pessoa de confiança, mas, acima de tudo, estar ciente de que algo pode sair diferente do planejado e, nessa hora, é importante respirar fundo e analisar a situação para definir o melhor caminho a seguir.

Que conselhos darias a quem está a pensar viajar da mesma forma pelo país, mas tem receio de condutores irresponsáveis? E de cães? (porque li que "fugiste" de alguns recentemente)

A melhor dica para fugir dos condutores irresponsáveis é procurar estradas secundárias, que sejam menos movimentadas. Esse é um dos motivos pelos quais gosto tanto de pedalar por estradas de terra. Além das belas paisagens, é claro. Usar luzes e roupas/colete com boa visibilidade também ajudam. Sobre os cães, foi só recentemente que tive esse problema. Já ouvi dicas de jogar água para assustá-los, mas o que fiz foi desmontar da bicicleta, colocá-la entre mim e os cães e caminhar lentamente sempre de olho nas reações deles. Assim que deixei a área de “domínio” deles, pude subir na bicicleta e seguir meu caminho enquanto eles voltavam para trás.

Acredito que viajar de bike tenha um significado diferente para cada pessoa e sinto também que cada viagem desperta em mim sentimentos distintos. Em alguns casos, trata-se da superação de percorrer um percurso exigente, em outros é a felicidade de me sentir imersa na natureza e ainda uma forma de organizar meus pensamentos, cansando o corpo para descansar a cabeça. Para quem tem interesse, recomendo testar e descobrir qual o tipo de viagem que mais se encaixa com o seu perfil.

Se pudesses repetir uma viagem de bicicleta no país, qual seria?

Eu gostei muito da última viagem que fiz de Pinhal Novo para São Bartolomeu de Messines passando por Évora, Beja e Castro Verde, mas faria algumas alterações no percurso para evitar os portões fechados. Também tenho vontade de explorar mais o Norte de Portugal, principalmente os parques Peneda-Gerês e Montesinho, e a Serra de São Mamede, que, além de linda, tem a graça do nome ser também o meu apelido.

Obrigado, Michele!

Podem acompanhar a Michele e as suas viagens de bicicleta no seu blog e no instagram.