Porto Covo já não é só um destino de verão,  porque o “Lamelas” existe e está aberto todo o ano, de quarta-feira a domingo.  E foi à porta do restaurante, por volta das 11 da manhã que nos encontrámos com a chefe Ana Moura. Na cozinha já existe algum frenesim, e na sala já se preparam as mesas, o dia começou há cerca de uma hora.

Restaurante Lamelas
O restaurante "Lamelas" da chefe Ana Moura entrou na lista de restaurantes recomendados do guia Michelin créditos: A.Palma

Ana Moura tem 39 anos, mas ninguém lhos dá, mostra-se sempre descontraída, ainda que esteja sempre atarefada. Não escreve listas, anota tudo o que precisa na cabeça e vai repetindo mentalmente ao longo do dia. Os produtos são de fornecedores ali da região e é este o ponto de partida, não só da nossa visita, como do projeto. “Eu acredito que quanto mais eu possa dar à terra, em termos económicos, melhor vai ficar a terra e melhores produtos vão ter. Todos ganhamos”, explica.

Os legumes, a fruta, o pão e a carne compra ali mesmo na vila, a escassos metros do restaurante; o peixe e os vinhos é que vêm de fora de Porto Covo, mas da região do Alentejo.

Também o nome é importado da terra, “Lamelas” é o apelido do avô materno, nascido em Porto Covo, e onde Ana e as irmãs vinham passar férias em miúdas. A família materna da chefe é natural da vila e curiosamente a artéria principal tem o nome do seu trisavô, “Rua José Faial”.

Rua principal de Porto Covo
créditos: A.Palma

Apesar das muitas ligações a Porto Covo, este não foi um destinado óbvio para a chefe. “Eu sempre sonhei em abrir um bar onde pudesse servir comida, para se estar a comer e a conversar até tarde”, conta. Este sonho tinha morada em Lisboa, mas no verão de 2020, enquanto passava férias em Porto Covo, surgiu a oportunidade de ir ver um espaço, que tinha sido outrora um restaurante e estava para arrendar. “Gostei muito do espaço e depois foi uma questão de decidir abrir”, conta.

A varanda com vista para as falésias e baía de Porto Covo é um dos ex-libris do “Lamelas”, mas o que apaixonou a chefe foi a possibilidade de ter cozinha aberta para a sala de refeições.

E foi a 18 de maio de 2021 que a chefe Ana abriu as portas do seu primeiro restaurante. “A base é o peixe, porque estamos numa zona onde há muito bom peixe e com sabores do Alentejo”, diz. Contudo, defende que o Alentejo e a cozinha alentejana não é toda igual. “A cozinha alentejana é muito mais do que o receituário obrigatório tradicional. E a cozinha do litoral alentejano é muito diferente da do interior”, explica.

O “Lamelas” é o seu primeiro restaurante, mas Ana Moura já tinha passado por cozinhas como a do Eleven, em Lisboa, onde estagiou com o chefe Joachim Koerper e de onde seguiu para Espanha. No país vizinho esteve no restaurante Ampudia; no El Almacen chefiada por Isidora Beotas; fez um estágio no Arzak, em San Sebastian, e foi também recomendada para o Astelena 1997, também em San Sebastian, do chefe Ander González. Voltou a Portugal em 2015 para chefiar o Cave 23, em Lisboa e, em 2017, assumiu os comandos da cozinha da Bacalhoaria Moderna onde esteve até 2020. “Para mim é importante ter cultura e saber mais de cada cozinha. Não quer dizer que por saber a cultura da cozinha italiana, ou indiana, vá aplicar na minha, mas torna-nos melhores profissionais”, defende.

Ana Moura
A chefe Ana Moura aos 37 anos inaugurou o seu primeiro restaurante créditos: Gonçalo F.Santos

Os legumes, a fruta, o peixe ou o pão: roteiro pelas escolhas de Ana Moura

A chefe  levou-nos a visitar os seus fornecedores e a conhecer a origem da sua cozinha.

  • Mercado de Porto Covo: a banca da Cristina

O Mercado Municipal de Porto Covo fica à entrada da vila. No interior há bancas de peixe, legumes, frutas, produtos regionais e flores; e no exterior também existem algumas lojas com artigos de verão ou empresas de atividade turística.

É aqui que encontramos a banca de Cristina Brás, fornecedora de legumes e frutas do “Lamelas”. Cristina vende no mercado há 10 anos, com produção própria e algumas parceiras com outros produtores, vende de tudo um pouco.

As cebolas, em grandes quantidades, o alho, os coentros, tomates, poejo e funcho são alguns dos produtos mais comprados pela chefe Ana Moura.

  • O Talho do António

Ainda que o “Lamelas” não seja um restaurante de especialidade de carne, há alguns pratos no menu com esta proteína e o “Talho do António”, o único na vila de Porto Covo, é o fornecedor.

“Entrecosto, toucinho, linguiça e um quilo de banha”, diz de cor a chefe mal entra no talho. Aqui abastece-se da carne de vaca e borrego, maioritariamente.

Este é um negócio de família há 53 anos. O atual proprietário, António José, começou com 13, com o seu sogro. Hoje tem 65 anos. Lembra-se de Ana em miúda e também a chefe se lembra de ir ao “Talho do António”, outrora noutra rua.

  • A Padaria de Porto Covo

Para os apaixonados do pão alentejano, não há sítio melhor. Quem entra na rua 25 de abril dá logo pelo cheiro que esvoaça no ar, principalmente, em horário noturno.

É também um lugar de memórias para a chefe Ana que relembra as noites de verão. “Tinha horas para chegar a casa, mas era autorizada a esperar que abrisse a padaria só para comprar o pão antes de ir para casa”, conta. No verão esta tradição mantém-se e a padaria ainda abre às onze da noite para fornadas de pão, e não só.

Sandro Martins é quem está agora à frente do negócio que é da família há quase 60 anos. “Os meus bisavôs vieram do norte e começaram por vender porta a porta, com um cavalo e carroça, ali em Sines: azeite, petróleo, bacalhau, mercearias…”, conta.

Foi desta sociedade que mais tarde surge, em 1966, “A Padaria”, uma das relíquias da vila — e do “Lamelas”.

Além do pão, as queijadas e as bolas de Berlim são as especialidades mais procuradas.

  • Mercado de Santiago do Cacém: o peixe da Rosa e do Gagarine

É no mercado de Santiago do Cacém, concelho vizinho de Sines, que conhecemos uma das armas secretas do “Lamelas”: o peixe da Rosa.

Rosa e o marido, Gagarine, são os únicos atualmente a terem banca de peixe no mercado. “Todos os dias acordo a pensar que tenho que vender peixe”, diz a comerciante com a sua energia contagiante. Os dias não são todos iguais e nem sempre têm os mesmos peixes, mas todos os dias às três da manhã está no armazém com o peixe já comprado pronto para dividir e levar para a banca.

“À noite mando mensagem à Rosa a pedir o peixe, e a Rosa gosta de me ligar às 8h da manhã a dizer o que é que há e o que não há. É a hora ideal para me ligar”, ri-se a chefe. Rosa confirma entre gargalhadas.

Robalo, peixe-galo, linguado e a abrótea, peixe abundante na costa alentejana, são os peixes que Ana mais compra.

O peixe sai da banca todo arranjado, consoante o gosto de cada cliente. “E vai tudo com muito carinho”, diz Rosa enquanto nos mostra uma fotografia da encomenda de linguados feitos por Ana Moura há uns dias.

“Eu já tinha ouvido falar da Rosa [antes do Lamelas] e houve um dia que lhe mandei uma mensagem a dizer que queria trabalhar com ela”, conta. As idas ao mercado são cada vez menos, porque já há confiança de ambas as partes.

Rosa, fã assumida da chefe Ana, diz que ficou “muito feliz e orgulhosa” pelo convite da chefe para ser sua fornecedora. “Para mim é muito bom e ela ajudou-me muito, porque nós somos um mercado. Vendemos muito? Vendemos. Mas sei que vendo muito também porque vendo para a Ana.”

 A parceria é perfeita e, na verdade, quem vem conhecer Santiago do Cacém, tem de conhecer a Rosa e a banca do Gagarine que já não é só uma banca de peixe, é também de produtos do concelho. Quem aqui vem consegue trazer todos os produtos para uma refeição: peixe, carvão, azeite, especiarias, queijos, vinhos e até chocolates pode levar para a sobremesa.

Do arroz de peixe, às migas doces: o sabor a Alentejo com a alma, coração e técnica da chefe

 

O “Lamelas” entrou para a lista de restaurantes recomendados pelo Guia Michelin, no passado mês de fevereiro, e a nomeação não surpreende, mas isso dizemos nós depois de provar alguns dos pratos da carta.

Com a cozinha com vista para a sala, quem entra no “Lamelas” dá logo de caras com a chefe e todos os que com ela trabalham. O ambiente é de concentração, há pratos a serem finalizados no balcão com toda a minúcia, e outros ainda a serem preparados.

Na sala, a mãe da chefe, Fernanda, recebe os clientes com simpatia e delicadeza, num novo desafio muito diferente da área profissional em que sempre trabalhou, arquitetura.

Começa por sugerir os aperitivos e destaca dois deles: a Margarita Alentejana, com xarope de coentros (9,50€), e o cocktail Medroni, uma homenagem ao medronho (9,50€). Ambos valem a pena a prova e são ótimos marca-passos para a marcha triunfal de sabores que se aproxima.

margarita alentejana
Margarita Alentejana com xarope de coentros é um dos cocktail perfeito para um início de refeição num dia soalheiro créditos: A.Palma

Para começar, não pode faltar o pão alentejano, vindo diretamente de “A Padaria”, a manteiga de cor (manteiga de porco temperada) e o toucinho frito (6.50€ o conjunto).

As entradinhas são compostas por várias opções que podem variar entre: saladinha de polvo, saladinha de ovas, escabeche de mexilhão, lulas fritas com maionese de limão (a cor florescente anima logo a vista), patê de fígados de abrótea, almece com peixe curado ou gaspacho em salada (5,50€ cada).

Os temperos, texturas e combinações de sabores são sem dúvida os fatores que despertam não só o paladar, como também a vontade de provar mais e mais desta carta criada pela chefe.

Desde sempre assumido como um restaurante de peixe, os pratos da costa são os que estão em maioria no menu.

O SAPO Viagens provou cinco deles, dos quais, a abrótea com amêijoas, em molho verde (19,50€); açorda alentejana com linguado frito e ovo escalfado (23,50); lula recheada com migas de grelos, e patê de ovas e pescada (27€); canelones de sapateira com salada de funcho e molho do seu coral (35€) e arroz cremoso de peixe e camarão (33€).

Como não somos críticos gastronómicos, não escrevemos sobre a técnica de confeção dos pratos, dizemos apenas que os quatro estavam maravilhosos e difícil é escolher o preferido.

Contudo, de forma despretensiosa, elaborámos o nosso pódio, que é meramente subjetivo:

Existem também no menu opção vegetariana e opções de carne, denominadas no mesmo por da horta e do campo, respetivamente. O SAPO provou o arroz caldoso de coelho (23,50€) e aprova a sua inclusão na carta, apesar de para a chefe Ana Moura o peixe ser a identidade do “Lamelas”.

Arroz Molho caldoso
Arroz caldoso de coelho créditos: A.Palma

A carta de vinhos do “Lamelas” também é uma declaração de amor à região. Apresentada com todo o cuidado está organizada por produtores. Inicialmente procurou-se produtores num raio de 30 e 40 quilómetros, mas hoje a carta está mais ampla.

Entre outros, pode encontrar na carta vinhos da Herdade do Cebolal (Santiago do Cacém), Monte da Carochinha (Santiago do Cacém), A Serenada (Grândola), Vicentino (Odemira) ou Cortes de Cima (Vidigueira).

montra Lamelas
A Herdade do Cebolal foi a primeira casa de vinhos escolhida pela chefe Ana Moura para estar na sua carta créditos: A.Palma

Para finalizar, ainda que já bastante satisfeitos, fomos também surpreendidos pelas três sobremesas da carta — Migas doces com nozes e medronho mel (5€); tarte de queijo com caramelo e pistácio (5,50€ )  e a mousse chocolate com crumble de amendoim (5,50€).

Aproveite a Primavera e faça uma visita ao “Lamelas”, esteja sol ou chuva, o conforto do espaço, a vista, a zona envolvente e, claro, todo o menu são razões que farão a visita valer cada quilómetro que se tiver de percorrer para lá chegar.

O SAPO Viagens visitou o Lamelas a convite do restaurante