Com a ajuda do Norberto, o meu guia, fui criar a minha história feita de cenários verdadeiros. Sem a orientação de um guia seria difícil acontecer. Nenhuma das criaturas que aqui vive terá pena de alguém que não esteja preparado. Parte do mundo também não tem sido condescendente com a Amazónia. A biodiversidade é aqui colocada, muitas vezes, em carne viva. Ainda assim, quando as minhas botas estrearam a selva, o que pensei foi: há tanto verde que mesmo olhando para outras cores não sei se elas existem.
A viagem até à Amazónia profunda é feita primeiro de barco e depois em canoa. São umas horas a saltar de rio em rio e a ver as suas coreografias. A maior floresta tropical do mundo faz fronteira com nove países mas o meu nariz sabe que não inspirará mais do que uns poucos metros quadrados da mesma.
É improvável conhecer tudo, mas este pouco é suficiente para sentir que existem tantas coisas que não nos pertencem: a língua de fora de uma anaconda; formigas que surgem de todo o lado e nos provam que estar sozinho é um rumor; cascas fortes de árvores fortes que dão para fazer peças de roupa; folhas secas que indicam a ausência de raiz; o cacau, a castanha, o tucumã, o açafrão; a azeitona preta que se rói como um fruto e a sua árvore que em nada se parece com uma oliveira; os credos indígenas, revestidos de plantas medicinais; a agonia de um animal a ser comido por outro; uma ave que parece que deu um jeito à anca, endireitando-se em cima de um galho; uma cadeira partida, sozinha, provavelmente a meditar; uma panela que deixa escapar fumo enquanto cozinha um pedaço de galinha; uma memória enferrujada, uma máquina de costura que diz "Singer", esquecida num jardim.
Depois existem, também, coisas só nossas: o pulsar do sangue nas veias quando usamos a catana para abrir caminho; a troca de uma pulseira com um índio na aldeia de Yukuro; um macaco que deixa cair paleoliticamente uma anona que quase nos acerta; o corpo a ir buscar conforto no desconforto de uma cama de rede, ao relento; a incerteza noturna e todos os barulhos que se tornam nossos por não sabermos se é uma onça, um jacaré, um inseto perigoso ou uma iguana inofensiva.
Todas estas energias indomáveis ficam ao serviço do nosso sensorial. Que pica. Que sentimento de atrevimento. Penso na lareira lá de casa enquanto fazemos uma aqui para cozinhar arroz branco e vegetais. Quando regressar à lareira lá de casa sei que pensarei nesta experiência. Penso no que existe e no que não existe. É isso. Durante estes processos de vai-e-vem os olhos são interrompidos pelos estalidos das brasas. Volto a mim e ouço mais um ruído. Tento segui-lo e falar com ele, sem o ver. Como se lhe estivesse a perguntar "quem está aí?". Não me responde. Talvez porque é mais livre do que eu.
É tarde, estou cansado. Provavelmente estaria mais confortável a apanhar conchas numa praia paradisíaca qualquer. Mas isso também não sei se seria bom. A última vez que apanhei conchas denunciei um torcicolo no dia seguinte. E isso eu não quero. Prefiro pensar que as sombras têm cor, juntar vários verdes, gerar um sei-lá-o-quê e levar tudo comigo.
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