Em "Quatro estações em Wuhan", um blogue da AFP, Héctor fala sobre as suas viagens à cidade chinesa antes, durante e depois do surgimento da pandemia.
Héctor Retamal tinha visitado Wuhan uma vez antes do vírus, para fazer a cobertura de um jogo de basquetebol. Wuhan é uma cidade gigante. Onze milhões de pessoas vivem lá, mais do que os habitantes da Cidade do México, Nova Iorque ou Paris.
O testemunho de Héctor Retamal em "Quatro estações em Wuhan"
"Inverno
Os meus familiares do Chile - a minha mãe, o meu primo e a sua namorada - estavam de visita a Xangai quando ouvi falar pela primeira vez do vírus em meados de janeiro. Fiquei um bocado preocupado. Inicialmente por não saber se eles iam conseguir sair da China para regressar a casa. Depois, as máscaras começaram a aparecer nas ruas. Em poucos dias, qualquer um conseguia sentir que estava a chegar algo grave.
Dirigi-me até à estação de comeboios para viajar para Wuhan. Os meus chefes ligaram-me, tinham receio que a missão fosse muito perigosa. Insisti para ir. Recordei-os que já tinha feito a cobertura de uma epidemia de cólera no Haiti. Só percebi a seriedade da situação quando o comboio de alta velocidade chegou, quatro horas depois, a Wuhan. Era a última estação, mas quase ninguém desceu: apenas umas 30 ou 40 pessoas, ao invés de centenas. Eu estava entre elas, a chegar a uma cidade fantasma, onde reuni-me com Leo Ramírez e Sébastien Ricci, do escritório de Pequim.
O medo já se tinha apoderado dos habitantes de Wuhan. Alguns polícias pediram-me a mim e aos meus colegas para regressarmos ao hotel. "É perigoso ficar nas ruas", alertaram. O medo pairava no ar. Vi pessoas trancadas em casa, a observar pelas grades das janelas. Durante as duas horas de caminhada por aquele bairro vi só quatro ou cinco pessoas na rua.
Mas o choque só chegou quando fomos aos hospitais. As pessoas faziam fila dentro e fora, algumas sentadas em cadeiras que levavam consigo. As pessoas dirigiam-se a mim e seguravam no meu braço, pedindo que eu entrasse para ver. Queriam que visse o que estava a acontecer.
Isso raramente acontece na China. Hesitei em segui-los, por medo de que os seguranças me vissem e chamassem a polícia, mas, ainda assim, entrei e vi como a situação estava difícil. Os hospitais estavam claramente saturados.
Então, tirei esta foto:
Nunca conseguimos averiguar a causa da morte deste homem mais velho, apesar de tentarmos. O corpo ficou horas no chão até alguém removê-lo. A imagem do corpo e a agitação ao redor acabaram por simbolizar a crise do coronavírus.
Saímos da cidade no dia 31 de janeiro, num voo humanitário enviado pela França com destino a Marselha. Passamos duas semanas em quarentena em França.
Primavera
Voltei a Xangai no dia 24 de fevereiro. Fiquei alguns dias num hotel enquanto investigava qual era a situação no prédio onde vivo e se teria que voltar a ficar em quarentena. Felizmente não precisei. Quando regressei ao meu apartamento, os membros de um "comité de bairro" interrogaram-me. Para entrar no prédio, teria que medir a temperatura.
Voltei a Wuhan no final de março, dias antes da cidade sair do confinamento geral. Algumas pessoas continuaram fechadas em casa: ainda não se atreviam a sair. Vi pessoas que lhes passavam refeições através das barreiras de segurança. Mas pouco a pouco, a vida foi voltando à normalidade. Os profissionais da saúde que tinham vindo de outras partes do país para ajudar regressaram as suas cidades.
Wuhan é uma encruzilhada no coração da província de Hubei: une o leste com o oeste da China e o norte com o sul. A cidade está localizada às margens do grande rio Yangtze, a meio caminho entre Pequim e Guangzhou, no sul.
Wuhan é uma cidade relativamente rica, com dezenas de laboratórios e centros de investigação. Há empresas de mineração, fábricas de automóveis, aço e têxteis. Também é um grande centro agrícola: algodão, cereais, piscicultura. Hubei é conhecida como a "terra do peixe e do arroz", à sombra da grande barragem das Três Gargantas.
O melhor lugar para vistar lá é a margem do rio. A vida da cidade parece construída ao redor dessa corrente de água. Eu fui lá muitas vezes.
Wuhan é como uma versão menor de Xangai: moderna e junto a um rio, mas muito mais amigável.
A cidade também tem uma quantidade de parques onde as pessoas vão para se exercitar e dançar.
Em Xangai, algumas pessoas temem que os estrangeiros sejam portadores do vírus. Às vezes, quando apanho um elevador, não querem entrar comigo. Tal nunca aconteceu em Wuhan. As pessoas cumprimentavam-me. Continuaram a abordar-me e a perguntar o que estava lá a fazer. Foi assim que conheci um grupo de dançarinos.
Verão
Gosto de me aproximar das pessoas. Gosto de ser aceito e de ganhar a confiança das pessoas. Quero que se sintam confortáveis e que levem o seu tempo para conversar. Como é que eu poderia ter uma ideia da vida de outras pessoas se não as deixasse entrar na minha?
Isso aprendi no Haiti, onde a vida é dura e as pessoas sobrevivem sem nada. Em Wuhan, não tentei esconder-me. Quero que as pessoas saibam o que estou a fazer e entendam por que estou ali. Não escondo a minha câmara, essa é a regra básica. Não gosto das fotografias tiradas em segredo e, se alguém me pede para apagar uma, apago.
Depois de uma missão jornalística, fico sempre a pensar nas pessoas que conheci. O que será feito delas? Este ano, em Wuhan, pude voltar e ver algumas delas e verificar se estavam bem, principalmente as que vão nadar no rio. Fiquei feliz ao ver como a cidade recuperava o seu ritmo com o tempo.
Fui, inclusive, a uma discoteca que estava lotada. Os chineses adoram divertir-se e Wuhan é uma cidade jovem, com muitos estudantes.
Outono
Durante a minha última visita a Wuhan, procurei qualquer sinal que restasse da pandemia. Não consegui encontrar nenhum. A cidade parecia ter voltado à normalidade, mesmo depois de 4.000 pessoas terem morrido lá por causa do vírus. O número representou a maior parte das mortes por coronavírus registadas na China.
No entanto, o luto silencioso ainda marcava presença por lá.
As ruas estavam cheias de gente, com engarrafamentos e os centros comerciais lotados. Talvez tenha ficado um pouco menos lotado do que no verão, devido à chuva e ao frio. Mas assim que o sol aparecia, as pessoas saíam para a rua.
A única coisa que parecia não ter regressado a Wuhan eram os estrangeiros. Durante uma semana, devo ter visto só mais dois. Havia muito mais antes do vírus.
Mesmo assim, o medo do vírus permanece.
No hotel, pediram-me o resultado negativo do teste de COVID-19 e o meu código QR de saúde. Cada cidade agora tem um código QR fornecido pelas autoridades de saúde para que as pessoas andem com o mesmo no telemóvel. Contém dados recolhidos através do telemóvel sobre onde a pessoa circulou e se esteve perto de alguém infetado.
As regras foram rígidas durante a crise do coronavírus. Em Xangai, retomaram recentemente algumas medidas, como o uso de máscaras. Em alguns lugares ainda medem a temperatura, de perto ou com uma câmara térmica: se der verde, pode entrar sem problema.
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