Texto: Carla Lourenço / Fotografia: João Pedro Augusto

Despedimo-nos de San Pedro à pressa, sem tempo para beijos ou abraços apertados. Já não cheguei a brincar mais com as cadelas do hostel, nem a subir ao varandim de onde era possível espreitar o resto da população. Junto ao parque infantil que passávamos a caminho da Caracoles, encontrámos o autocarro que nos levaria até Calama, para daí descermos até Santiago do Chile. Os bilhetes comprados online, à pressa, na noite anterior, não foram verificados por ninguém. Sentámo-nos, desta vez separados, e eu não resisti a adormecer, embalada pelo bambolear rodoviário. Acordei a tempo de perceber que a nossa saída era a seguinte. Fiz sinal ao João, atrás de mim, e saímos atabalhoados.

Era dia de semana e o sol já se tinha levantado havia algumas horas, mas as ruas de Calama apresentavam-se estranhamente desertas. Percorremos o mesmo caminho várias vezes, como uma criança que pinta continuamente o mesmo desenho tentando não sair das linhas, até encontrarmos, por fim, um pequeno café que servia pequenos-almoços. Entrámos, cada um com duas mochilas, e sentámo-nos numa mesa para dois ao ar livre. Ao meu lado, a televisão elevada passava uma versão duvidosa do homem-aranha, dobrado em espanhol. Ainda ensonada, decidi-me por chá e torradas, enquanto que o João pediu a versão chilena de ovos estrelados, servidos na frigideira. Nada disto teria pertinência, se não contrastasse com os pedidos habituais dos clientes locais. Pratos cheios de arroz e carne, em doses duplamente reforçadas, chegavam às mesas que nos circundavam. Nos corredores que se perpendiculavam, as especiarias pediam licença para passar, encolhendo-se nos cruzamentos para não irem de encontro a quem não as tinha pedido. O termo cheio de chá fumegava na nossa mesa e eu distraí-me da conversa com o João quando vi um cão de rua, sorrateiro, chegar delicadamente a uma mesa recém-abandonada ainda com restos de frango no prato. No que seria certamente um costume, o cão endireitou-se, apoiando as patas dianteiras na mesa, e olhando atentamente à volta foi limpando o prato. Deliciou-se, sem interrupção, e no final ainda o vi passar a língua pelos lábios em jeito de aprovação. Depois, voltou à sua posição quadrúpede e saiu sem pagar.

Santiago do Chile
Santiago do Chile créditos: João Pedro Augusto

Calama serviu-nos apenas de rampa de lançamento para o início do fim da viagem. Aterrámos em Santiago sem que a bagagem tivesse viajado no porão e vimo-nos num aeroporto demasiado movimentado, comparativamente aos dias que andávamos a viver. Não fossem as feições das pessoas misturadas com uma tez achocolatada, pelo preço inflacionado da vida, dir-nos-íamos na Europa. Do táxi olhávamos os prédios que se erguiam mais alto do que as árvores na selva perto de Machu Picchu. O frenesim da cidade colocou-nos em alerta, especialmente depois de nos encontrarmos com a proprietária do pequeno apartamento no 12º andar onde iríamos ficar. Com uma simpatia sul-americana e um sorriso latino, explicou-nos as regras do condomínio: onde deixar a chave, quais os serviços e pontos de interesse mais próximos e como esperava que desfrutássemos da nossa estadia.

Até aqui tudo bem. Não se despediu, porém, sem adicionar uma lista de conselhos e informações, que o João interiorizou surpreendentemente rápido. Disse-nos a Ana que a cidade que nos acolhia era perigosíssima. "Há três anos era tudo muito tranquilo, mas agora? Agora nem pensar em andarmos à noite pelas ruas". Falar ao telemóvel em público é para evitar. Mostrar câmaras fotográficas, nem pensar. Os assaltos são frequentes e em zona nenhuma estaríamos seguros - exceto em casa. Bom, pintou-nos ela um cenário tão dantesco, que mal se despediu de nós o João acorreu ao telemóvel para procurar no Google a taxa de criminalidade de Santiago do Chile. Comparou-a com a nossa Lisboa; o facto de a capital chilena ter-se apresentado com um valor que era mais do dobro da capital portuguesa não ajudou em nada.

Saímos. Com cuidado, mas saímos. Deambulámos pelas praças principais, que no passado foram o centro de grandes manifestações pelo fim à violência contra as mulheres. Subimos ao Cerro de Santa Lucía, o coração verde da cidade, que do alto de uma fortificação nos dá a panorâmica mais bonita de Santiago. Uma placa comemorativa, de um dourado gasto, imortaliza numa das paredes as palavras que Charles Darwin escreveu um dia sobre aquele terreno montanhoso quando ali passou. Eu, que secretamente queria reproduzir os passos de Alexander von Humboldt pela América Latina, vi-me precisamente no mesmo local onde muitos anos antes tinha estado um dos seus discípulos. Num muro ali perto, outras palavras, desta vez anónimas, gritavam: “Te amo, América”. Julgo que passadas tantas linhas e tantas palavras já não preciso de explicar o porquê.

Santiago do Chile
Santiago do Chile créditos: DR

De volta a casa, regressámos às ruas onde se misturavam bancas de livros em segunda mãos, artesanato, sumos de fruta feitos na hora e a música - sempre a música ao vivo. Corremos, antes que a noite ameaçasse cair na cidade e nos roubasse os últimos raios de sol. Cruzámos passadeiras quando o verde brilhou para os peões, deslizávamos junto aos obstáculos para os patins em linha, rodeámos um pequeno parque onde as aulas em grupo cresciam como cogumelos.

O único perigo era não aproveitar tudo o que Santiago tinha para nos dar. Ao fim do dia, ao olhar pela parede de vidro, 12 pisos acima do chão, para o céu que escurecia lembrei-me de outra tatuagem que vi marcada no Cerro de Santa Lucía e repeti baixinho: “Solo somos polvo de estrellas”.

Santiago do Chile
créditos: João Pedro Augusto