Texto: Carla Lourenço / Fotografia: João Pedro Augusto
Na bancada de madeira que separa a cozinha da sala jaziam dois copos de vinho, vazios. A garrafa ficara a meio. A escolha do vinho fora feita na tarde anterior; uma recomendação que fizeram ao João e que ele orgulhosamente trouxe para casa. O saca-rolhas pedi-o emprestado ao vizinho três portas à esquerda. Rapaz simpático que não estranhou a solicitação. Certamente não fui a primeira nem seria a última a bater-lhe à porta com tal pedido. A acompanhar o risotto de cogumelos caseiro brindámos: à viagem, a nós, à vida de uma forma geral, ao futuro no particular.
Revisitámos os lugares que conhecemos, as aventuras que vivemos, as dificuldades que passámos. De cada vez que levantávamos o copo de tinto, o João gabava a qualidade do néctar. “Uma excelente escolha, suave. Sentes o travo a baunilha?” Eu, que começara a apreciar tinto há pouco mais de meio ano, dava-me por satisfeita simplesmente por não ser um vinho de sabor muito intenso. Mas o João estava contentíssimo com a sua escolha. Imaginem, portanto, como lhe parti o coração, quando lhe contei que a um hemisfério de distância a informação que me chegava era de que o vinho era de qualidade duvidosa. O tipo de vinho que os caloiros bebem num qualquer jantar universitário demasiado regado. O chamado “carrascão”. Provou novamente. E concordou com a missiva. Afinal tinham-no enganado. A blasfémia! O ultraje! Eu ria-me, com os lábios demasiado marcados a roxo. Ele piscava-me o olho quando o filmava com o telemóvel.
No nosso último dia, antes de nos despedirmos de Santiago do Chile - o local mais a sul que alguma vez pisámos, decidimos voltar aos lugares onde fomos felizes. Regressámos ao Cerro de Santa Lucía uma segunda vez, para nos deitarmos na relva a ouvir a natureza que se misturava com o caos citadino. Parámos numa pequena gelataria de esquina que nos entregou os dois gelados de cabeça para baixo. Com a bola de chocolate no copo, um cone de bolacha servia de chapéu, colocado como se fosse a cereja no topo de um bolo. Não lhe entendi o propósito; considerei que poderia ser apenas o reflexo de que quem vive no Hemisfério Sul está invariavelmente de pernas para o ar. Os postais já tinham sido enviados para Portugal, não havia, portanto, essa tarefa a tratar. Restava-nos absorver as últimas horas, os últimos sons, as últimas músicas, a última pizza. Já nem me atormentavam os carros verdes dos carabineros, forrados por completo com uma vedação que deixava apenas livre parte do vidro em frente ao condutor. Descemos a rua onde comprámos um carrinho de madeira, amarelo, para o Vicente. Parámos numa pequena banca de artesanato também de madeira. Os brincos que o João tanto namorara horas antes eram, afinal, para mim. Um pedacinho da América do Sul que eu poderia usar sempre que a saudade apertasse.
Vimos o sol a pôr-se na estrada que nos levava de volta ao aeroporto. Todo o céu se enfeitou para a despedida, com as cores a escorrerem devagarinho pela tela, em direção às montanhas. Os laranjas-torrados típicos do Atacama voltavam para se misturarem com uns magentas escuros. No rádio do táxi tocava um reggaeton altíssimo.
As horas seguintes foram fastidiosas e quase intermináveis: no regresso a Lisboa passámos 42 horas em aeroportos. Um primeiro voo noturno levou-nos de Santiago do Chile para Lima. Às três da manhã, como nómadas, pousámos as mochilas no chão e procurámos o sono. Abatia-se sobre mim a tristeza do irremediável regresso à rotina. Não conseguia adormecer e não era por falta de cansaço. Olhei o João. Jazia de olhos fechados. Um braço esticado e o outro a apoiar a cabeça, como se estivesse a apanhar sol. Rastejei para o braço que ele deixara livre, arrastando o meu casaco e o lenço, e ali me aconcheguei, procurando o conforto fraterno. Só assim descansei, embalada pelos passos ao nosso lado, que se arrastavam perdidos.
De Lima voámos para Atlanta, e de Atlanta voámos para Amesterdão. Enquanto esperávamos pelo embarque que nos traria de volta à Europa, o sol descia devagarinho sobre o A350 que descansava na pista. O João tinha os olhos verdes, brilhantes, fixos na aeronave do outro lado do vidro. Declamava-me, apaixonadamente, factos sobre aviões e aviadores e eu fazia notas mentais para me lembrar de tudo. Seria a primeira vez do João num A350 e ele estava em êxtase. Prometi-lhe uma viagem especial, mas adormeci à primeira oportunidade. Quando aterrámos em Amesterdão pedi-lhe que deixasse sair toda a gente com calma; afinal de contas não tínhamos nenhum outro avião para apanhar - naquele momento. Com os corredores vazios, o João saiu à minha frente, de mochila às costas, e eu fui cumprimentando e falando com a tripulação. Deixaram-me chegar ao capitão, que com um sorriso acedeu ao meu pedido. Chamei o João de volta e disse-lhe: “vais conhecer o cockpit do A350.” Qualquer réstia de sono ou cansaço desapareceram-lhe da cara e todo ele era uma criança que estava prestes a realizar um sonho. Sentámo-nos os dois onde momentos antes tinham estado os pilotos e rapidamente o capitão e o João se embrulharam numa conversa animada que incluía luzes, botões e diferenças entre aviões. Eu sorria, essencialmente, por ver o João feliz.
Por fim, a nossa Lisboa, menina e moça, cansada do trânsito do fim da tarde. Vinte e quatro dias depois de partirmos, chegámos. As mesmas mochilas, as mesmas roupas, os mesmos cabelos despenteados. Tudo parecia igual, mas tudo estava diferente. “Já não sou quem era”, pensei, na viagem de regresso a Benfica, enquanto olhava os carros que passavam como estrelas cadentes do outro lado da janela. A viagem à América do Sul - esse sonho coincidente de tantos e tantos anos, finalmente realizado - alterou-nos individualmente, em par, e de forma tão profunda que só com a devida distância temporal nos seria possível compreender o antes e o depois. Adiámos a despedida imediata com uma última ceia, na mesma mesa branca que servira - e servirá - para planear outras aventuras. Terminámos o jantar e descemos. Junto ao carro cansado, que permaneceu imutável à frente do prédio lisboeta durante aquelas quase quatro semanas, despedimo-nos. Eu soluçava um misto de saudade e gratidão, felicidade e angústia. As lágrimas roubavam-me o ar para respirarem. Avancei para os braços do João. Apertei-me com força contra o peito do meu melhor amigo com uma clara certeza: “sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”.
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