Por: João Damião Almeida
É o último dia na ilha e decidimos contorná-la a pé. Partimos à hora de almoço, de toalha ao ombro e água na mão, debaixo de um calor tórrido tropical. Caminhamos pelas estradas de terra que se ramificam sem regra por entre a vegetação típica desta ilha do lago Nyasa, ou lago Malawi como é conhecido fora do país.
Passando pela vila, a única daquela ilha estreita, observamos com atenção os costumes a que os países vizinhos já nos habituaram e outros que a região nos traz de novo. São os mercados a vender legumes e cereais, os restaurantes improvisados ou as barbearias sempre abertas até tarde mas são também os jogos de dowha, os baldes de bolos e chamuças caseiros ou o português conversado, que se ouve pela primeira vez.
Detemo-nos num desses restaurantes e pedimos nsima a acompanhar chambo para nos dar forças para a caminhada da tarde. Um dos pratos nacionais é este peixe da família da tilápia, exclusivo do lago Malawi, que é normalmente seco ao sol ou frito. Não menos típico, nsima é o acompanhamento à base de farinha de milho que, não tendo grande sabor, liga bem com o molho do feijão, do peixe ou da carne que normalmente acompanha. Servem-nos chá quente com leite e manteiga.
Almoçados, continuamos a percorrer a ilha. Mais à frente, passamos pelo porto onde chegámos dias antes e de onde partiremos no dia seguinte. Apesar de ter um aeródromo alimentado por voos domésticos, a viagem para a ilha pode ser bem mais interessante.
É que, pelas águas do lago Malawi, vive um espécimen ancestral e afamado com cinquenta metros de comprimento e hábitos migratórios pouco regulares: o barco MV Ilala. Este navio de transporte de passageiros e de mercadorias já circulava naquelas águas antes do país se proclamar independente e desde aí pouco terá mudado. Com três andares que se enchem de gente, mochilas, galinhas, cestos de legumes e redes de peixe com odor intenso, este barco liga as cidades costeiras do país de norte a sul, passando uma vez por semana em cada sentido, todas as semanas sem exceção, exceto sempre que se atrasa.
Além do conforto, a segurança não é alegadamente a qualidade mais óbvia da embarcação. Quando alguma avaria é de tal forma proibitiva que o Ilala se vê obrigado a atracar por uns dias, é momentaneamente substituído pelo MV Chambo, cuja principal diferença é ser bem mais pequeno para a mesma gente, mochilas, galinhas, cestos de legumes e redes de peixe com odor intenso que já iriam sobrelotar o seu homólogo.
Esta embarcação constitui um ícone do país e parte fundamental das rotinas dos poucos milhões que vivem junto ao lago Malawi. Deixar os nossos sentidos inundados com uma noite de insónia neste barco é por isso essencial para quem se propõe a tentar compreender o que é ser malawiano. Infelizmente, ou não, este plano não chega ao roteiro da maioria dos turistas. A juntar à pouca regularidade dos voos domésticos para Likoma, fica fácil compreender porque é que, mesmo sendo aquela ilha um dos principais pontos de interesse do país, não encontrámos lá o centro turístico que não teríamos estranhado. Na realidade, vimos muitos hotéis mas nenhum turista. Nem os locais nos pareceram habituados a vê-los.
Continuando a caminhada para o norte da ilha, os cenários, na sua harmonia bucólica, multiplicam-se. Alternam-se zonas agrícolas, árvores baobás e vegetação selvagem, raramente perdendo de vista o lago imenso que a todas alimenta. Passeiam naqueles caminhos de terra crianças que nos chamam ao passarmos e mulheres com bebés ao colo nos seus chitenjes de algodão e molhos de galhos ou cestos de fruta à cabeça.
O Malawi é um dos países com os índices mais preocupantes de pobreza e educação e um longo caminho pela frente na redução das desigualdades sociais e de género. Como vários países da região, tem ainda desafios demográficos sérios que advêm (entre outras coisas) da maioria da população ter menos de dezoito anos. No Malawi, cerca de 80% das pessoas pratica agricultura de subsistência, dependendo totalmente do seu trabalho e da sua sorte. Qualquer adulto lembrará as cheias de 2001 e os meses de fome que lhes seguiram e que levaram centenas de vidas ou mais recentemente a crise de 2015. Também aqui na ilha, particularmente aqui na ilha, só se come o que se tem e só se tem o que se cultiva, se cria e se pesca.
O dia já vai avançado quando, sem se fazer adivinhar, começamos a notar os tijolos por entre a vegetação que formam uma parede muralhada em estilo conventual. Encontrámos a Catedral de São Pedro, um edifício colossal que parece ameaçar afundar a ilha. O estilo gótico e tão europeu é confortavelmente familiar e parece que se ali entrarmos seremos recebidos por missionários e refeições quentes, mas eles já não estão lá há várias décadas. Entramos para admirar os vitrais e subimos à torre para uma vista ampla sobre a ilha.
O sol já se põe quando chegamos de volta ao hotel de onde partimos seis horas antes. Corremos para o lago que rebenta na areia da praia do hotel. Àquela hora, a temperatura está perfeita e atiramo-nos para a água calma para nos refrescarmos. Ainda não me habituei ao sabor doce que deixa nos lábios. Também ainda não me saem da cabeça a bilharzia ou os crocodilos do Nilo que habitam aquelas águas mas que todos nos dizem não irem para aquela zona. Mas tudo se desvanece com o esplendor da paisagem à minha frente.
Antes de escurecer, o céu metamorfoseia-se em tons dourados e laranjas enquanto o sol desaparece atrás do horizonte. Do lado oposto, umas nuvens trazem consigo clarões constantes de relâmpagos, comuns naquela zona tropical. À nossa frente, as montanhas da costa de Moçambique erguem-se, imponentes e elegantes. Na relatividade dos cinco mil metros que nos separam, sentimo-nos tão perto. Estamos próximos, mais do que alguma vez estivemos e mais do que do Malawi, onde regressaremos. Parece que se nos esticarmos, se nos agigantarmos, poderemos lá tocar. Cumprimenta-nos, como um chamamento, mas Moçambique terá de esperar.
Projeto Prá frente
O Projeto Prá Frente foi criado por dois jovens engenheiros, com a intenção de conhecer (e partilhar) uma perspetiva completa do Sudeste Africano, focando-se não só no seu património deslumbrante, mas também nas suas pessoas e naquilo que tem para oferecer para o futuro.
Para saber mais siga o Instagram: @projeto_prafrente
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