Por: Manuel Carvalho
Nestes quatro dias, fizemos parte da família de um jovem chamado Revo, que nos ofereceu alimentação e estadia, sem pedir moeda de troca. Além disso, é o fundador do projeto Green Hope nesta mesma ilha, proporcionando ensino a crianças cujas famílias não têm possibilidade de o pagar, numa escola construída por ele mesmo e é ainda professor voluntário numa das escolas públicas de Kome.
Kome é uma das mais de 3000 ilhas no Lago Vitória, assim chamado em nome da famosa rainha britânica. Este divide-se entre os três principais países da África oriental: Quénia, Uganda e Tanzânia. A ilha de Kome está em território tanzaniano e é ligada a Mwanza, a segunda maior cidade do país, através de um ferry que parte três vezes por semana.
Durante as manhãs destes dias, assistimos a várias aulas lecionadas pelo nosso anfitrião, nas duas escolas de que falei. Na disciplina de inglês, as crianças aprenderam o alfabeto, as vogais, e os sons principais da língua, enquanto que em matemática, o tema foi as operações de somar. No final da aula, praticaram a escrita destas letras e as operações, em exercícios que ajudámos a corrigir. Pudemos ainda ouvir uma cativante aula de história medieval africana e pré-colonialismo, para alunos mais velhos.
Pela tarde, era comum aventurarmo-nos pelas ruas de terra batida de Ntama, a maior vila da ilha.
Num dos dias, o nosso destino é um pequeno estabelecimento de telecomunicações que oferece eletricidade por uns trocos, e onde tínhamos deixado os nossos telemóveis e powerbanks umas horas antes.
Pelo caminho, somos várias vezes interpelados com “mzungu”, palavra swahili (não ofensiva) para “estrangeiro”, ou com um dos diversos cumprimentos aos quais normalmente sabemos responder. Ainda assim, continuamos a aprender, já que nos últimos dias descobrimos a existência de novas formas de saudação, especiais para quando nos dirigimos a pessoas de maior idade ou a mulheres.
Grande parte das vezes, estas interações acabam por se alongar e é nesses momentos que percebemos que o nosso conhecimento da língua é ainda reduzido. Temos de usar outros trunfos, como o nosso amigo Revo (que é fluente em sete línguas), ou o sempre útil tradutor da Google.
No centro da vila, passamos, a certa altura, por um grupo de pessoas mais velhas que estavam sentadas num banco a jogar cartas (iguais às que tão bem conhecemos), e paramos para observar. Rapidamente, e através de gestos, somos convidados a entrar no jogo. Aceitamos o convite ainda algo a medo, pois o jogo não parece simples, nem semelhante a nada que conheçamos. No entanto, vamos aprendendo as regras, por intuição, consoante a legalidade das jogadas que fazemos, e ficamos por lá uma hora muito divertida que passa a voar.
Seguimos depois para a zona do porto, para observar um pôr-do-sol no segundo maior lago do mundo (sem contar com o Mar Cáspio, que não é um nome consensual nesta categoria). A temperatura e as bonitas paisagens parecem pedir um mergulho, mas mantemos sempre a distância, por sabermos dos letais crocodilos do Nilo que habitam naquelas águas menos profundas. Na verdade, o Lago Vitória é também a nascente do rio Nilo, o mais longo do mundo, e que conhecemos há uns meses, no Egito.
No regresso a casa, chamam-nos à atenção os vários mercados de rua no centro da vila. Passamos as amigáveis senhoras que vendem pequenas tilápias, pescadas no lago e posteriormente secas ao sol e as bancas de vegetais bem compostas, mas não resistimos a parar nas de fruta, para comprar uma papaia enorme, com o tamanho de uma melancia, por 1000 xelins (38 cêntimos).
Do outro lado da estrada, num descampado acidentado, dez crianças vestidas com camisolas antigas do Manchester United e do Barcelona usam uma pequena bola improvisada e quatro postes de madeira para um intenso duelo de futebol que parece já durar há horas. Uns metros à frente, outro grupo, mas de pessoas mais velhas, junta-se em redor de uma mesa de pool e cumprimenta-nos, depois de na véspera ali termos passado mais de uma hora a tentar entender as regras da versão local do jogo - desta vez sem sucesso. Eram mesmo muito complexas.
À noite, jantamos uma apetitosa refeição à base de hidratos de carbono, acompanhada de chá e terminada com a papaia, que, pessoalmente, considero ter sido a fruta mais saborosa que comi em toda a minha vida.
Depois de alguma conversa e cansados, vamos para o nosso quarto, um pequeno edifício quadrado, construído pela família. Tem paredes de tijolo não pintadas, uma chapa de metal no topo e outra como porta, e é cuidadosamente iluminado, usando pequenas lâmpadas e uma bateria.
Lembro-me de, antes de adormecer e já dentro da rede mosquiteira que rodeia a cama, transformando-a em algo semelhante a uma tenda de campismo, pensar no jogo de cartas de há umas horas atrás: “como seria a vida na Europa se fosse comum convidarmos para jogar cartas connosco desconhecidos que vão a passar na rua, não conhecem o jogo e nem sequer falam a nossa língua?”.
Projeto Prá frente
O Projeto Prá Frente foi criado por dois jovens engenheiros, com a intenção de conhecer (e partilhar) uma perspetiva completa do Sudeste Africano, focando-se não só no seu património deslumbrante, mas também nas suas pessoas e naquilo que tem para oferecer para o futuro.
Para saber mais siga o Instagram: @projeto_prafrente
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