- O meu nome é Say. - Disse ela, enquanto dividia os seus olhos por cada um dos 11 que éramos. E a modéstia não deixou, pois poderia ter acrescentado que com as suas duas dezenas de anos sabe os arrozais de cor. Ela sabe-os de cor, verdes ou dourados, ela soube-os a primeira vez ainda menina, nas costas da mãe. Agora, menina-mulher-mãe, percorre (numa cadência regular) estes trilhos irregulares, enlameados e escorregadios – pela humidade ou pela água da chuva - ora com os filhos às costas, ora com um grupos de curiosos, como neste dia.
Vai, de pés nos chinelos e atrás deles, mais protegidos - no calçado de trekking - os pés dos viajantes, cheios de vontade de conhecerem os famosos terraços de arroz. Seguimos-lhe os passos, repetimos-lhe os desvios, as pausas.
- Mais cinco minutos assim e depois os trilhos são mais fáceis. - Dizia ela a sorrir, e o cansaço já não nos permitia a crença naquelas palavras.
Recuemos um dia: despedimo-nos da capital do Vietname de noite. Foi na estação de Phu Ly que vimos Hanói - essa cidade ‘entre rios’ que se estende pela margem direita do rio Vermelho - desaparecer, à medida que a nossa carruagem: vermelha e azul, do Expresso da Reunificação, avançava em direção ao noroeste do Vietname. Sapa era o nosso próximo destino e além da nossa mala levávamos outra, de igual peso, carregadinha com a nossa expetativa.
Voltemos ao trekking, estamos no meio dos arrozais, perdidos algures pelo vale Muong Hoa, connosco, além da Say, há um grupo de mulheres que nos acompanham durante esta caminhada, pertencem à tribo Hmong e são facilmente identificadas pelos seus trajes pretos tradicionais e pelos lenços de um axadrezado colorido, que trazem à cabeça. Percorrem, todas as manhãs, um percurso de horas, para acompanharem um grupo de turistas, nelas mora um único objetivo: vender o artesanato que trazem nos seus cestos. Pelo caminho vão oferecendo a sua ajuda e antecipam a necessidade de uma mão para servir de apoio. Todas elas vão de chinelos e parecem feitas de um equilíbrio diferente do nosso.
O dia estava muito húmido, nos dias anteriores tinha chovido, e a altitude fazia sentir-se na respiração. O terreno incerto, enlameado, com trilhos de água pelo meio. Naquelas cinco horas - com a Mia às costas - parecia que o mundo inteiro era feito de subidas teimosas. Quem nos acompanhava, ainda que ofegante, tentava manter a compostura sempre que os nossos olhares se encontravam; e os rostos, que eram olhos franzidos pelo sol e pelo suor, passavam a ser um sorriso solidário, se fossem do Porto diriam: ‘Corajosos, eu já estou à rasquinha para carregar comigo, quanto mais com a miúda às costas’, mas o que nos ia sendo oferecido aos olhos parecia encher-nos os pulmões de novo, para mais umas boas passadas.
De cima olhámos para baixo, para cima, para a frente e agradecemos: à bruma que recuou; ao sol, que se abriu, e assim nos permitiram ver Sapa. Terraços de arroz, riachos com coragem de fugirem por entre as montanhas, búfalos e vacas entram na composição da paisagem. Avistam-se aldeias que se distribuem por entre os vales, cada uma com os seus costumes, as suas tradições, as suas roupas, o seu dialeto. Em comum, a vida que vivem, o seu ganha pão: a cultura do arroz, a criação de búfalos, galinhas e porcos, o artesanato.
Parámos na aldeia de Lao Cai, aí almoçámos, num restaurante em cima de um rio, onde crianças saltavam para a água. Antes de continuarmos a caminhada comprámos a nossa lembrança do Vietname. É uma peça costurada à mão e que serve para guardar a Mia, trazê-la junto ao peito, quando adormece, ou nas minhas costas, quando exploramos o mundo em longas caminhadas: um sling igual ao que estas mulheres usam e as cores que moram nele são as cores que moram no Vietname. Vou trazer comigo este país, as suas tradições, as memórias desta viagem, sempre que trouxer a Mia abraçada a mim, por meio deste tecido vietnamita.
Continuámos, agora com a Mia no sling novo, entre conversas conheço, pelas fotografias no telemóvel, os dois filhos da Say (de 3 e 2 anos), quando, logo à frente, sinto o meus olhos na incerteza do que olhar: de um lado os arrozais, do outro três meninas. Os arrozais, grandiosos, a encher-nos os olhos e as três meninas: pequenas, sujas, ali a um canto desta paisagem – tão desejada pelos olhos curiosos de mundo e meio.
Os seus olhos pediam qualquer coisa, o que quer que lhes oferecêssemos, nós trazíamos a Mia às costas e, talvez por isso, o coração mais atento a todas as outras crianças. Não conseguimos – nem quisemos – passar sem parar, abrimos a mochila e partilhámos o que nesse dia tínhamos levado para a Mia. A pressa com que o comeram repetiu-se nas lágrimas que me caíram cara abaixo, assim que dei o primeiro passo que as deixaria para trás. Mais à frente: duas meninas brincam com um cão, atrás ouve-se a voz da mãe a ensinar-lhes a cantiga que as oferece para fotos ao lado dos turistas: ‘uma fotografia, um dólar’.
Acelerámos o passo: ‘Foi com os turistas que aprendi a falar inglês’. Ouvi a Say dizer. Mais à frente confessou-me que aquilo que ganhava nesses trekkings lhe permitia ter os seus filhos no infantário. E eu juntei as lágrimas que soltei e solidifiquei-as num sorriso firme, ao saber que os seus dois filhos não estariam, naquele momento em que a tínhamos connosco, algures naquele vale imenso, meios despidos, com fome de tudo, sem qualquer mão humana a cuidar-lhes do corpo e dos medos.
Chegámos à aldeia seguinte, esta está cheia de crianças, passámos por uma escola e no recreio dançavam, dançámos com elas e, mais à frente, numa casa feita de tábuas de madeira, onde espreita uma menina da porta entreaberta, pode ler-se: Free English Classes. E a esperança ganha um novo fôlego, com a possibilidade de um futuro melhor.
Voltei-me de novo para os socalcos desenhados na terra e quase nos prometemos que ali voltaríamos um dia, antes da colheita, para os ver vestidos de um verde vivo ou de um dourado nobre. Fechei os olhos e vi, ali, ainda que distante, os tapetes do nosso Douro – demorei-me aí, nessa viagem que junta, em mim, Sa Pa e Douro e foi como encontrar-me algures entre as asas e as raízes.
E há um equilíbrio nisto que eu mal vos sei contar, que se vive e comemora do interior.
Este artigo foi originalmente publicado em Menina Mundo.
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