Bilhete-postal por Pedro Neves

Ainda se lembram do que faziam na última semana antes do nevoeiro da pandemia Covid-19 engolir o país e deixar-nos confinados em casa? Eu corria para apanhar os últimos dias de uma pequena exposição na Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) com as várias propostas para o futuro do seu Centro de Arte Moderna (CAM). Quatro anos depois, o projeto vencedor tornou-se realidade com a reabertura, no final de setembro, do museu, agora rodeado por um novo jardim a sul.

A exposição de março de 2020 intitulava-se “12 projetos de arquitetura” e colocava à apreciação do público o que várias firmas de arquitetura idealizavam para dar novo fôlego ao CAM. Lembro-me bem da sensação de abrir o pequeno dossier com a proposta do arquiteto japonês Kengo Kuma e dar de caras com uma única frase, impressa no frontispício: “We are living in the era of the garden, not of the architecture” ("Estamos a viver na era do jardim, não da arquitetura"). Imagino que o júri encarregado de escolher a proposta vencedora tenha sentido o mesmo que eu ao deparar-se com esta maneira tão sucinta de descrever o que estava realmente em causa.

As opções sobre o que fazer ali eram limitadas: demolir ou modificar substancialmente um edifício com interesse arquitetónico era uma impossibilidade e expandir a sua pegada, à custa do jardim em volta e no contexto de uma cidade cada vez mais consciente da importância dos seus espaços verdes, seria impensável. Só restava uma maneira de projetar o CAM: abri-lo ainda mais ao exterior e enfatizar a sua nova envolvência, à semelhança do que o projeto dos arquitetos paisagistas António Viana Barreto e Gonçalo Ribeiro Telles fez pela sede e museu da Gulbenkian no século passado.

Kuma foi buscar à arquitetura japonesa um conceito que lhe permitiria destacar-se ainda mais das outras 11 propostas: o engawa, termo que designa o espaço abrigado pelo telhado ao redor da habitação tradicional japonesa, no qual “nunca se está totalmente no interior, nem no exterior”. É essa a inspiração para o componente mais vistoso, e perspicaz, do seu projeto: uma enorme pala curvada instalada na fachada sul do CAM, que esbate a fronteira entre jardim e edifício, e debaixo da qual os visitantes podem desfrutar ao mesmo tempo das maravilhas do exterior sem dispensar totalmente a proteção da arquitetura.

Esta dupla função esteve bem à mostra no primeiro dia da nova vida do CAM, com a realização de um encontro entre Kengo Kuma e o diretor da instituição, Benjamin Weil, para uma troca de ideias sobre o que ali foi feito. No último dia completo de verão, a conversa decorreu enquadrada (ou, talvez fosse melhor dizer, encurvada?) pela enorme pala de madeira, que proporcionou um espaço acolhedor e luminoso à grande quantidade de gente interessada em ouvir, mesmo de pé, as primeiras impressões em público do seu criador.

O jardim secreto que se abriu à cidade

A Gulbenkian é, há muito, um dos refúgios mais procurados no centro de Lisboa para escapar às obrigações da vida na cidade. Ao apelo da arte, junta-lhe o convite para uma incursão num labirinto vivo, e bem cuidado, que irradia um invulgar sentimento de segurança e resguardo, apesar de não levantar mais do que árvores e arbustos ao exterior.

Para quem gosta de ali passar algum tempo, esta nova extensão do seu oásis de sossego e biodiversidade é uma espécie de presente de Natal antecipado. Passei lá várias vezes ao longo destas duas primeiras semanas e fiquei especialmente impressionado pela forma como o entardecer ilumina o novo jardim, em particular a clareira junto à pala idealizada por Kuma. O melhor lugar da "sala" até já parece estar escolhido: a base do enorme plátano no local, que encontrei sempre ocupada.

Não é a única nem a primeira árvore a destacar-se nos dois hectares agora abertos ao público, com o projeto de arquitetura paisagista a cargo de Vladimir Djurovic. Logo à entrada, um imponente pinheiro-das-canárias faz-se notar através do seu robusto e bifurcado tronco — e das suas ocasionais pinhas em queda (cuidado com a cabeça!). É uma árvore impressionante, a caminho dos 20 metros, que qualquer novo jardim teria vaidade em apresentar ao mundo logo no seu primeiro dia.

Isto recorda-nos, aliás, que a novidade ali somos nós, os visitantes. Dá um misto de surpresa e tristeza, pensar que este jardim esteve sempre ao nosso alcance, a poucos passos dos caminhos habituais da Gulbenkian, atrás de um muro durante décadas, até à sua aquisição pela FCG em 2005. Quantos outros recantos verdes existirão por aí na mesma situação, à espera de alguém que abra os seus portões ao mundo?

É preciso notar que também houve um preço a pagar pela abertura deste jardim à cidade. As obras complicaram, durante quatro longos anos, a circulação pedonal na rua Marquês de Fronteira e nem tudo foi concretizado de acordo com o plano inicial. O muro do século XIX que delimitava o antigo parque de Santa Gertrudes, por exemplo, constitui uma das mais substanciais alterações à maquete exibida em 2020. O projeto arquitetónico para o vértice sul da Gulbenkian previa a manutenção parcial daquela muralha de aspeto quase medieval. No fim, apesar de alguma oposição, optou-se pela sua remoção total. O resultado é uma entrada principal mais convidativa que, ainda assim, não é imune à crítica de rescrever a história do local.

Um espaço cheio de potencial

Regressemos ao primeiro dia deste novo refúgio da cidade, no passado dia 20, e ao que é possível vislumbrar do seu futuro. Questionado sobre como imaginava o CAM daqui a 20 anos, Kengo Kuma fez novamente uso do seu poder de síntese para fornecer uma resposta tão exata quanto desconcertante: “With bigger trees” (“com árvores maiores”). Consciente da necessidade de se alongar um pouco mais, perante uma audiência expectante de cada uma das suas parcas palavras, lá desenvolveu a sua reflexão para dizer que imagina que “muita coisa vai acontecer neste espaço”.

Por seu lado, o diretor do museu salientou que apreciar uma sala cheia de arte ainda é uma experiência que nos subtrai ao mundo digital onde cada vez mais vivemos e fez eco de uma frase que lhe ficou na memória sobre como “um museu é um dos poucos lugares na sociedade onde não existe publicidade”. Uma observação que parece especialmente pertinente na Lisboa de hoje, em que todos os dias parece surgir um novo painel publicitário nas ruas da cidade. Quanto aos futuros usos do novo jardim, Benjamin Weil disse estarem ainda a pensar como incorporar o espaço verde na programação cultural. A avaliar pela enchente de visitantes nos seus primeiros fins-de-semana (a entrada no museu é gratuita até dia 7 de outubro), a cidade parece claramente interessada em qualquer pretexto adicional para ali passar tempo.