Quem já leu o livro de João Lopes Aguiar, “Os Meus Descobrimentos - Volta ao mundo em Couchsurfing”, não deverá estranhar a decisão de, em plena pandemia, ter aproveitado a reabertura das fronteiras terrestres, em julho de 2020, para ir até Barcelona finalizar a compra do veleiro que deu o nome de Winderlust e que dali o transportou até Cabo Verde.

Da Costa Dorada - e com paragens pelo meio - rumou até Gilbratar. Pouco antes desta península entrar em quarentena, seguiu para as Canárias pois corria o risco de mais tarde não conseguir sair daquele território. Nas Canárias encontrou “um ambiente um bocado mais tranquilo”.

“Às vezes”, conta a propósito da sua experiência de viajar de barco em tempos de pandemia, “as portas estavam-se a fechar e não havia outra alternativa senão passar por elas e sair. Esse [Gilbratar] foi um bocado o caso.”, remata.

Aos 25 anos, ano de 2008, João Lopes Aguiar decidiu deixar o emprego como engenheiro de design de micro-chips e a namorada para descobrir o mundo. No total, e ao longo de 19 meses, visitou 25 países dos cinco continentes. As experiências, que incluem, couchsurfing, andar à boleia e voluntariado são partilhadas no livro que editou em 2018.

De Gilbratar às Canárias apanhou a tempestade Dora, mas não estava sozinho. Para este trajeto contou com uma tripulação composta por três franceses: um casal e um rapaz.  O viajante explica que prefere ir acompanhado quando as passagens são mais longas, pois, para ele, acaba por ser mais divertido ao mesmo tempo que é desafiante e enriquecedor ter de coordenar uma tripulação.

“Apanhámos ventos, rajadas de 48 nós que é ali o nível 10, o começo do nível 10 da tempestade. Então pronto, efetivamente o barco subia as ondas e batia”, descreve o capitão, admitindo que ficou um bocado preocupado, porém, “aquilo ao fim de 12, 24 horas já acalmou. Depois ainda tivemos ondas grandes, mas já sem o vento, o que faz muita diferença”.

“Enfim, é muito tricky. Tu não sabes o que vai acontecer. Depois chegar às Canárias foi um espetáculo.”

Nas Canárias ficou algum tempo até que rumou, em alto mar, para Cabo Verde onde não faltaram ventos fortes, ondas com cerca de quatro metros e golfinhos. “Dez dias”, recorda a duração da viagem até às terras da morabeza. “Foi mesmo muito, muito fixe. Foi espetacular.”.

“À chegada de Cabo Verde apareceram sardinhas voadoras, sardinhas ou carapaus, a sério que é assim incrível. Isto parece uma história mirabolante, mas é verdade. Estava no barco e, de repente, ouvia-se tac, tac, tac e vias lá um peixe…” partilha com entusiasmo. “Eles voavam, são peixes que têm asas, não sei se é para fugirem aos predadores marítimos…”, reflete. “Voam mais junto à água, mas voam. É impressionante! E vão para dentro do barco, depois param lá… Obviamente que foram comida, tem que se aproveitar”, finaliza em tom de brincadeira acrescentando que às vezes também entravam algumas lulas. “Foi uma viagem muito bonita.”.

Veleiro Winderlust

O harmatão, vento seco e poeirento com origem no Saara, fez com que só avistasse o solo cabo-verdiano quase ao chegar, a três milhas. “Será que estou a passar ao lado?” questionou-se ao não avistar terra a dez e a cinco milhas.

“Depois a chegada a Cabo Verde foi assim uma outra realidade”, desabafa enquanto recorda a grande oferta turística existente nas ilhas Canárias. “São grupos de ilhas que estão muito próximos, mas que ao mesmo tempo estão distantes e isso dá que refletir. Porque é que há-de ser assim?”, pergunta de forma retórica. “Aí dá para ver um bocado uma fronteira… Por acaso é uma fronteira que vês no mar. Deixa-me um bocado triste na verdade. Porque é que as coisas têm que ser assim?”.

Testemunhar os efeitos da pandemia no arquipélago cabo-verdiano foi para João Aguiar “desolador”. Encontrou a ilha do Sal, cuja economia depende maioritariamente do turismo, “praticamente às moscas”. “Questionava-me como é que as pessoas estão aqui a sobreviver”, comentou.

Já a beleza natural das ilhas não levantou questões: “Cabo verde é um paraíso. É incrível”.

O Winderlust encontra-se em Cabo Verde desde abril e João pondera fazer a travessia do Atlântico entre novembro e abril para evitar apanhar tempestades. “Sim, existe esse ensejo, mas não é um objetivo de vida ou morte, nem eu me quero colocar nessa posição. Estou feliz com o que fiz até Cabo Verde. Acho que foi uma viagem incrível”, explica.

Agora tem tempo para juntar mais tripulação e fundos, enquanto aguarda por “aquele sentimento de: é agora. “Estares com a cabeça mais no mar do que em terra, às vezes leva o seu tempo, exige uma preparação.”, exprime deixando também o convite a quem quiser juntar-se à possível próxima aventura: “Se alguém quiser juntar-se, fale comigo.”.

Velejar em tempos de pandemia. Porque não?

Apesar da pandemia trazer alguma incerteza, João considera que, mesmo que se fechem portos, existem sempre soluções, salientado de que com um barco há sempre a vantagem de “teres a tua casa”. O pior que pode acontecer? Ter de ancorar num sítio que não prevemos.

João diz ainda que se sente melhor no mar do que em terra ( até mais seguro por causa da pandemia) e distante do “debate negativo” e das “notícias pesadas” em torno do SARS CoV 2.

Winderlust

Através do seu testemunho, o capitão do Winderlust também procura desmistificar a ideia de que é complicado e caro ter um barco. De acordo com o mesmo, há sempre quem se quer desfazer de barcos, por exemplo, “malta mais sénior”, muitas vezes devido a condições de saúde.  Também existem barcos parcialmente destruídos. É uma questão de “a pessoa estar atenta” e pesquisar.

A propósito da formação em vela, que é importante, João Aguiar critica o ensino dado em Portugal. “Acho que a maneira que estamos a aprender aqui é complicada. Estamos a aprender muita coisa de há 50 ou mais anos. A sério? Nos dias de hoje com a tecnologia que temos é muito simples.”.

E não existem riscos? “Claro que existem riscos associados, mas nunca a tecnologia te pode possibilitar tanto estares a par das coisas como hoje em dia. Facilmente estás num barco e estás a acompanhar a meteorologia. “

Para o viajante, a prova de que velejar não é complicado é o facto de muita gente viajar assim. “Infelizmente, em Portugal não estamos habituados a isto nos últimos anos. Se calhar antigamente... Também gostaria de falar sobre isso. Antigamente havia esse hábito pelos melhores e piores motivos da história”, comenta, fazendo questão de salientar a parte negativa da história dos descobrimentos marcada pelo tráfico transatlântico de escravos, pela “rota de roubo de especiarias” e pelo roubo de património.

“Para mim, Portugal foi o maior traficante de escravos do mundo e ninguém fala disso. E quando uma pessoa viaja pelo mar, não só se lembra disso como vais ter a algumas ilhas e apercebes-te disso”, evidencia.

“É um tema incómodo, mas acho que é importante nesta altura do campeonato falar-se porque estamos na era do humanismo”, finaliza.

Viajar de veleiro também exige algum investimento, mas para João é suportável. “Se formos a ver aquilo que gastamos num ano inteiro em outras coisas, facilmente desvias isso" para investir num barco. “Não é de todo impossível, mesmo, mesmo. Não estamos a falar de mandar um vaivém para o espaço. Isso sim implica milhões e milhões.”, conclui.

E depois viajar à vela é grátis. Só precisamos de investir no barco.

Winderlust

E a sustentabilidade?

Para João, é importante falar-se sobre turismo consciente. “Consciente do impacto que causamos nas populações locais”, exemplifica, defendendo o debate sobre o tema. “Existe muito esse debate em algumas sociedades. Na portuguesa não vejo assim tanto, mas é certo que o turismo sobe os preços todos.”.

“Também temos que falar do impacto no planeta e, sem dúvida, a vela é um transporte super ecológico, é só o vento. Claro que há aqui que destrinçar o barco a motor do barco à vela. O barco à vela é infinitamente ecológico e, o outro, principalmente os cruzeiros são muito poluentes.”, esclarece.

"A vela possibilita este turismo mais consciente e mais conectado à natureza”, finaliza.

Winderlust, a casa que transporta João pelo mundo

Na hora de viajar e em viagem, João respeita sempre o seu instinto. “O meu estilo de viajar é completamento intuitivo”. Como nos explica, “a navegação também é intuitiva. Vais pelo sabor dos elementos”.  Assim, será o Winderlust o meio de transporte perfeito para a sua forma de viajar?

É provável que sim. Afinal, tal como nos revela, também viaja “ao sabor da paixão e da amizade”. No fundo, “pode acontecer o que acontecer” até porque um “barco é uma casa” que nos dá muitas possibilidades como a de monetização para, por exemplo, continuar a viajar. “Em Lisboa há muita gente que faz da sua casa Airbnb.”, constata. “Eu também cheguei a fazer isso durante algum tempo nas Canárias e estou a pensar fazer isso em alguns lugares. Isso possibilita-me depois seguir viagem. Também podes alugar o barco como charter”.

O capitão acredita que “ter objetivos extremamente fechados e herméticos” pode ser “a morte da viagem”.

“Acho que a beleza é essa e o barco chama-se Winderlust, que vem de wanderlust com wind (vento em inglês), mas também com wine, que é vinho (risos)… Mas wanderlust é isso: ir ao sabor do vento”.

E viajar de barco “nunca é igual”, assegura, lembrando-nos que o mar tanto pode estar tranquilo como, dias depois, num rebuliço. E faz-nos pensar ao dizer que só vemos metade do horizonte. “Não sabes o que é que está para baixo. É dinâmico e é intrigante. É misterioso. O mar tem este misticismo. Isso tudo, claro, traz adrenalina, traz êxtase, suspense.”

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