Viajantes e contadores de histórias de diferentes áreas reuniram-se em Guimarães, no passado fim de semana, para partilhar experiências e perspetivas sobre os dilemas que se colocam a quem faz da viagem o seu modo de vida. O SAPO Viagens esteve lá e destaca as frases e o abraço que marcaram a 3ª edição do Travel Fest, organizado pela Associação de Bloggers de Viagem Portugueses.
Logo a abrir o festival, o fotógrafo angolano José Silva Pinto (ou Tonspi, como também é conhecido) prendeu a atenção de todos no Teatro Jordão, em Guimarães, com a narração imersiva de uma das suas viagens mais recentes pela faixa litoral de Angola, entre Luanda e Oncócua, no sul do país.
“O meu filho ensinou-me a ser melhor pessoa” (Tonspi)
Foram mais de mil quilómetros a conduzir por caminhos muitas vezes desprovidos de estrada que serviram, tanto nas alturas aborrecidas como nas perigosas, para reforçar os laços com o filho. Com efeito, uma parte do percurso implica mesmo conduzir ao longo de uma estreita faixa de areia entre as dunas e o mar que só fica transitável durante a maré baixa — os que arriscam a passagem têm apenas quatro horas por dia para o fazerem em relativa segurança.
Não foi, ainda assim, o momento mais delicado da viagem. Restava estabelecer contacto com algumas das tribos que habitam o sul de Angola e cujas tradições também refletem as condições extremas em que vivem. Os Muhimba, por exemplo, baniram o uso da água na higiene pessoal, substituindo-a pelo pó vermelho de uma pedra esmagada com que esfregam e acabam por pintar os corpos. “E não cheiram mal”, garante Tonspi, que também passou aquelas semanas a dormir numa tenda e sem poder tomar um duche. “No carro”, confessou, “parecia um concurso de quem cheirava pior”.
“Não precisamos de pensar muito para ser bons cidadãos do mundo” (JoAnna Haugen)
No contexto da crise climática e das consequências do turismo de massas, era incontornável a um evento como o Travel Fest abordar os dilemas éticos que se colocam com crescente premência a quem se movimenta no mundo das viagens. O tema foi levantado com estudada incisão pela norte-americana JoAnna Haugen, escritora e fundadora da Rooted, uma plataforma de soluções ligadas ao turismo sustentável.
Na sua palestra, foi direta à raiz do problema: não podemos continuar a negar o mundo em que vivemos, poluído e desigual, na forma como contamos as nossas viagens. É por isso que, na sua perspetiva, quem trabalha na indústria tem a responsabilidade de dar a conhecer o outro lado da “fachada” bonita e instagramável que construímos para os sítios que promovemos. Para isso acontecer, defende Haugen, torna-se necessário incentivar e amplificar histórias de viagens sustentáveis, que também passem por dar voz às comunidades locais e mais marginalizadas.
No debate que se seguiu à exibição do filme “The last tourist", de Tyson Sadler, Haugen lembrou ainda de que nas férias não temos de deixar em casa "o chapéu" de cidadãos. “Precisamos de normalizar a participação em ações de impacto positivo quando viajamos”, afirmou. Coisas tão simples como recolher lixo na praia ou dispensar o serviço de quarto em curtas estadias já são, para Haugen, exemplos de pequenas ações ao nosso alcance que podem fazer a diferença.
“A Greta é uma dádiva, ajudou a mudar a forma como as pessoas viajam e foi apenas há 5 anos” (Thor)
Vindo de Torbjorn C. Pedersen (também tratado por Thor), o elogio a Greta Thunberg não é meramente simbólico. Dentro e fora do palco, o dinamarquês parece ter sido o orador que mais suscitou a curiosidade dos participantes do festival. Percebe-se porquê ao ouvi-lo contar como passou os últimos 10 anos a visitar de seguida todos os países do mundo (203 países) sem apanhar um único avião.
“Como está a tua cabeça depois de veres tantos países?”, quis saber a jornalista Teresa Conceição. “Assoberbada”, respondeu Thor, que descreveu o seu projeto como “um tremendo stress”, devido ao tempo que passou longe de casa e das várias ocasiões em que teve de reprimir a vontade de desistir, especialmente durante a pandemia (que o apanhou a passar por Hong Kong, onde o seu compromisso em não voar o fez passar dois anos à espera da reabertura total das fronteiras terrestres).
Completou a sua aventura apenas no passado mês de maio, depois de chegar ao último país na lista (as Maldivas). A vinda a Portugal para contar a sua aventura foi só a terceira vez que voltou a apanhar um avião desde então: “Senti-me culpado”, admitiu, quando lhe perguntamos como foi a sensação de voar após uma década a viajar exclusivamente por terra e mar. “Não me pareceu bem, após tantos anos a interiorizar este hábito, entrar novamente num avião, mas faço questão de continuar a viajar de autocarro e comboio sempre que possível”, garantiu.
“Não vamos fazer tudo bem, essa é a primeira ilusão” (David Freitas)
As expetativas estavam todas no campo do viking dinamarquês, mas foi o nortenho vindo de Gondomar que acabou por vencer os corações da audiência do Travel Fest. David Freitas é professor de informática e não precisou sequer de começar a sua apresentação para despertar a atenção do público. Um problema técnico com a projeção (que teria, provavelmente, chegado para descarrilar qualquer outro orador) permitiu-lhe preparar o terreno para aquela que seria a apresentação mais bem-disposta e comovente do fim de semana.
“Que tipo de viajante sou? Sou o assustado”, começou por assumir, o que não o impediu de conduzir, já por duas vezes, de Portugal até à Guiné-Bissau para doar viaturas e leite de substituição materno a um orfanato gerido pela ONG “Na Rota dos Povos” em Catió, no sul do país.
A história das suas viagens, marcadas por quase tantas contrariedades técnicas quanto golpes de sorte, não pareceria muito deslocada num espetáculo de comédia stand-up (com direito a breves momentos musicais). No final, todavia, as perguntas vindas da plateia mostravam que o humor reduzira mais uma distância, com sucessivos elementos do público a quererem saber como podiam acompanhar e contribuir para o seu projeto Ambulances for hearts. O fotógrafo Tonspi pareceu ler a vontade da sala ao agarrar o microfone para lhe pedir tão-só um abraço.
Em resposta a uma questão sobre como evitar as potenciais armadilhas do chamado turismo de voluntariado, o professor enveredou novamente pelo caminho da empatia: “Essa é a primeira ilusão, de que podemos fazer tudo bem”, respondeu. “Precisamos estar atentos, mas não podemos ter medo do erro”.
“Temos de alimentar esse punk, esse adolescente (interior) que ainda pode aprender e descobrir com a viagem” (José Luís Peixoto)
O punk interior é uma imagem de José Luís Peixoto, que aproveitou a sua passagem pelo Travel Fest para sublinhar a importância da escrita e da viagem no derrube do estereótipo sobre o que é pouco conhecido.
O escritor contou como adquiriu do seu pai o gosto pelas viagens e sentiu “alguma necessidade de compensação” ao deixar a sua aldeia-natal. “Não é fácil passar a adolescência numa aldeia de mil pessoas no alto Alentejo”, confessou. “Estava sempre a sonhar com outros lugares”.
À sua fome de mundo juntou-se, mais tarde, a necessidade de incorporar os lugares por onde passava na sua obra literária. Foi assim que surgiu o livro “Dentro do Segredo”, sobre as suas viagens à Coreia do Norte, um país que não considera necessariamente mais insondável que os outros. “Seja a Coreia do Norte ou a Tailândia, o difícil é ir abaixo dos estereótipos”, garantiu. É por isso que a vontade de descoberta, em seu ver, deve ser “o principal motivo da viagem”.
O Travel Fest tem nova edição marcada para maio de 2024, mais uma vez na cidade fundadora.
O SAPO Viagens esteve no Travel Fest 2023 a convite da ABVP. Fotografias gentilmente cedidas por Marília Maia e Moura.
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