O Travel Fest mudou-se de setembro para maio e quem ficou a ganhar foram mesmo os fotógrafos e amantes de natureza que puderam ver Guimarães na sua melhor luz, cheia de rosas em quase todos os seus recantos verdes e debaixo de um céu noturno invulgarmente avermelhado devido a uma tempestade solar.
No Teatro Jordão, o evento organizado pela Associação de Bloggers de Viagem Portugueses (ABVP) voltou a contar com casa cheia, uma carismática apresentadora (Michelle Cascais Rita) e a ser marcado pelos testemunhos de quem opta por viajar de forma mais responsável e atenta às realidades do mundo. Perante os efeitos cada vez mais evidentes da crise climática e a crescente multiplicação, em Portugal e no mundo, das reações às consequências do excesso de turismo, este encontro anual de viajantes e contadores de histórias parece ganhar cada vez mais sentido a cada edição.
O programa deste ano contou com dez oradores de diferentes origens e perspetivas sobre o poder transformador das viagens. Vale a pena destacar alguns dos mais marcantes.
Phoebe Smith: “A paixão é um superpoder!”
A britânica Phoebe Smith é uma auto-intitulada aventureira e escritora de viagens e veio ao Travel Fest contar como as viagens podem transformar a vida dos outros, mesmo sem apoios. Só é preciso descobrir as nossas paixões e "correr" com elas.
Deu como exemplo disso o desinteresse total com que se deparou quando quis organizar uma expedição à Antártica para um grupo de jovens desfavorecidos do Reino Unido e, perante a falta de patrocinadores, decidiu atravessar a Grã-Bretanha a pé da sua ponta mais a sul à mais a norte. Foram 1.333 quilómetros a caminhar e 40 noites a acampar no frio do inverno, mas conseguiu, com a ajuda de um parceiro de aventuras, angariar cerca de 9.300 euros e, eventualmente, realizar a ambicionada expedição em novembro de 2022.
Movida por uma paixão aparentemente incansável pelas caminhadas e campismo selvagem, Smith apelou a todos no Teatro Jordão para que ponham as suas obsessões a bom uso e não se deixem desanimar por um "não". “Só é preciso um pequeno gesto para fazer a diferença”, garantiu.
Bernardo Conde: “É muito mais fácil sermos úteis neste mundo do que imaginamos”
A garantia de Phoebe Smith podia ser eco do testemunho provavelmente mais emocional do fim-de-semana. Bernardo Conde partilhou com o público a sua experiência a viajar há mais de dez anos por Madagáscar, o país africano que o mundo exterior tende a associar a uma ilha de florestas luxuriantes pejadas de fauna exótica e “que já não existe”.
A contínua desflorestação, aliada à falta de respostas às necessidades básicas da população rural, tem vindo a modificar as paisagens desta ilha e a dizimar irreversivelmente a sua famosa biodiversidade. Porquê regressar, então? “Viajo cada vez mais por causa das pessoas”, conta o fotógrafo e líder de viagens.
“É um dos povos mais atormentados, mas também um dos mais resilientes que eu conheço”, diz o Bernardo sobre as gentes de Madagáscar. As suas fotografias mostram crianças e adultos sorridentes e, na sua experiência, sempre disponíveis para ajudar o próximo, apesar da arduosidade do seu quotidiano. Essa simpatia generalizada, aliada à realização de que não precisaria de muito para ajudar, levaram-no a envolver-se pessoalmente na criação de melhores oportunidades de educação para várias crianças com que se cruzou nas suas expedições ao país insular.
Em reconhecimento desse envolvimento, a organização do festival, pela voz de Filipe Morato Gomes, lançou o repto de ajudar a custear a remessa de materiais escolares que o Bernardo conta levar consigo na sua próxima expedição a Madagáscar. As dezenas de cópias impressas das suas fotografias tiradas no país, e colocadas à venda por 5 euros durante o encontro, foram vendidas num instante, angariando mais de 300 euros para a iniciativa solidária.
Vicente Fraga: “Opto por sofrer um pouco mais, mas vou”
Não é preciso atravessar o oceano para fazer a diferença noutras vidas. No caso do espanhol Vicente Fraga, bastou seguir alguns rios. O seu projeto consistia inicialmente em documentar pela fotografia os cursos de água da Galiza, conhecida por ser a “terra dos mil rios”, mas foram, mais uma vez, as pessoas a sugerirem um desvio e uma mudança no foco.
A sua apresentação, intitulada "A viagem interior", deu-nos a conhecer as histórias de vida de alguns dos que ainda resistem a viver sozinhos em várias vilas desertificadas da Galiza. Nem todos são idosos, como veio a descobrir. Numa visita a uma localidade aparentemente abandonada no norte da comunidade espanhola, por exemplo, foi sobressaltado pelo cumprimento de uma voz mais jovem. Tratava-se do último habitante da aldeia, cuja única companhia até aí fora a mãe, falecida há pouco tempo, tal como havia acontecido recentemente a Vicente. Dessa coincidência na perda brotou uma amizade improvável, que dura até hoje, entre dois homens que podiam nunca se ter cruzado.
Questionado sobre o futuro do seu projeto de viagem, Fraga diz-se mais interessado no presente e em continuar a viajar, sempre que pode, pelo interior cada vez mais esvaziado da Galiza: “O meu objetivo é desfrutar desta cultura, enquanto existe e sobrevive”.
A escritora Raquel Ochoa, outra das oradoras desta edição do Travel Fest, procurou condensar a palestra de Fraga com uma frase do escritor angolano José Eduardo Agualusa sobre como “viajar é perder pessoas”. Fraga reviu-se nela, e acrescentou: “Entre ficar no meu canto e arriscar a conhecer mais pessoas que irei perder, opto por sofrer um pouco mais, mas vou”.
Uma comunidade de viajantes
O tema das comunidades pairou sobre esta quarta edição do Travel Fest e, nos momentos finais do encontro, Rui Barbosa Batista, da organização do evento, voltou a pegar na ideia para descrever aquilo que o encontro anual começa a consolidar: "Estamos a criar uma certa comunidade, família, amigos, algo aí no meio...".
"Nós somos do tamanho do mundo que conhecemos e isso não depende do número de países que conhecemos", defendeu do palco do Teatro Jordão. "Tudo depende dos olhos que emprestamos à viagem, como vimos pelos oradores que passaram por aqui. Nós viajamos pela complexidade de sentidos e tudo isso é que enriquece as viagens", acrescentou.
A próxima oportunidade para voltar a trocar histórias, ideias e alertas em Guimarães sobre o mundo das viagens já tem data marcada no calendário: no fim-de-semana de 10 e 11 de maio de 2025, com preços reduzidos para quem comprar bilhete até ao final deste mês na página oficial do Travel Fest.
O SAPO Viagens esteve no Travel Fest 2024 a convite da ABVP, tendo ficado alojado no hotel Fundador. Fotografias do Travel Fest gentilmente cedidas por Marília Maia e Moura.
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