Por isso, não espanta que viva aqui o único mestre que ainda constrói os barcos de rio em madeira - o abrangel, ou barco de três tábuas -, cuja história nos leva ao tempo dos Descobrimentos, quando eram utilizados para seguir o curso dos troncos cortados nestas florestas e seguiam rio abaixo, só com a força da corrente, para a construção das naus.
O mestre José Alberto, no seu estaleiro de Dornes (único no país) ainda faz uns quatro barcos por ano, arte que aprendeu com o pai. “Antes, este barco servia para tudo. Levava cabras de uma margem para a outra, transportava resina, lenha, azeitona, milho, tudo!”, conta-nos ele, “Um dia, até uma senhora teve uma criança dentro de um barco destes. Andava à pesca com o marido e o bebé nasceu ali mesmo”. Os barcos são construídos em pinho: “Um pinheiro dá para fazer três ou quatro barcos”. Depois de prontos, José Alberto vende-os por 700€, normalmente, as pessoas que os usam para a pesca ou simplesmente para passear no rio nas férias ou em fins de semana.
Hilário Soeiro também ganha a vida nestas águas, navegando com o seu barco, rio abaixo, rio acima, levando turistas. O ‘Maria Odete’ pode levar até 20 passageiros para um passeio de 20 minutos (5€ por pessoa) ou de uma hora (10€). “A ideia foi do meu pai, que era carpinteiro. Ele percebeu, em 1951, que a construção da barragem iria trazer oportunidades”, explica Hilário Soeiro, “Mandou fazer o barco em Aveiro e começou logo com os passeios turísticos na barragem”. Mais tarde, há 20 anos, Hilário trouxe o barco para Dornes: “Aqui, de abril a outubro trabalha-se bem. Nos outros meses há menos gente”.
Marco Carvalho e a família usam regularmente um barco de madeira na pesca e na apanha de marisco, com o qual abastecem o próprio restaurante. “Pescamos durante todo o ano: achegãs, carpas, barbos, borgas, lúcios, percas. Há lagostins no rio todo e também há amêijoa”, conta-nos enquanto rema e distribui armadilhas para os lagostins que vão ficar no rio de um dia para o outro. “Amanhã, passo de novo e levo os lagostins que ficarem presos”.
Peixes e marisco do rio são depois aproveitados na gastronomia local, em pratos tão populares como a caldeirada, o ensopado e a sopa de peixe ou simplesmente para fritar ou grelhar. No restaurante ‘Fonte de Cima’, no cruzamento à entrada para Dornes, é a mãe de Marco que comanda a cozinha há mais de 20 anos. “Os nossos produtos são todos daqui. Há domingos em que frito mais de 50 quilos de achigã”, explica Elvira Carvalho, “Vem gente de Lisboa de propósito ao nosso restaurante para comer peixe do rio. As águas aqui são mais frias e muito fundas, o nosso peixe é mais branco e mais rijo e a nossa amêijoa é mais cheia”. Os pratos de peixe frito acompanham com migas de couve, feijão, batata e broa. Na carta, vamos encontrar outros pratos como a carne de porco com amêijoas do rio, a cabidela de galinha ou os lombinhos à Dornes, uma receita antiga da casa: lombos de porco com molho dos miolos e ovos batidos. Nos doces, o pudim de café, “é um dos mais apreciados” ou as filhós “que também saem muito bem”.
Na rua principal de Dornes, um pouco abaixo do posto de turismo, temos ‘O Rio’, aberto há três anos por João Martins. Apesar dos seus 81 anos é ele que gere o espaço com a mulher, Augusta Martins: “Estava cansado de ouvir as pessoas que vinham a Dornes queixar-se da falta de lugares para comer ou beber um café dentro da povoação, por isso decidi abrir um, embora eu não tivesse nada a ver com restauração”. ‘O Rio’ tem uma esplanada com uma vista magnífica para as águas do Zêzere, o lugar ideal para apreciar as especialidades da casa, que também passam pelos peixes de rio fritos ou grelhados mas onde encontramos outras opções como o bacalhau à Rio com molho de camarão. Nos doces, a escolha recai no pudim de abóbora com nozes, receita própria, e nos ‘dornitos’, outra criação da casa. Os ‘dornitos’ são deliciosas bolachas de limão e laranja com a cruz templária marcada na massa.
Ao longo do ano, realizam-se vários meses gastronómicos no concelho de Ferreira do Zêzere, eventos em que participam os restaurantes da região e que ajudam a promover os produtos autóctones: em janeiro, as migas; em abril, o lagostim do rio; em maio, a fava; em junho, o ovo (Ferreira do Zêzere garante cerca de 40% do mercado nacional de ovos); e, em novembro, a abóbora.
Outro produto tradicional da região de Dornes é o mel. Ildebrando Ferreira é apicultor há mais de 40 anos, tem 300 colmeias (os fogos recentes destruíram-lhe 80), mais de 30 mil abelhas de raça autóctone (a apis iberica) e conhece cada metro quadrado de campo e floresta em volta de Dornes. Sabe onde crescem o rosmaninho, a urze, os orégãos, o carvalho e a azinheira. Quando é necessário um determinado sabor, pega nas colmeias e leva-as para um sítio onde haja a planta desejada. As abelhas tratam do resto. “As abelhas comunicam umas com as outras e escolhem sempre as melhores plantas”, explica-nos. A sua empresa, a Casflorim, vende mel, cera, pólen (para fortificantes alimentares), geleia real, própolis e cera de abelha. O mel vai quase todo para Hamburgo, Alemanha, cerca de quatro toneladas por ano, com o rótulo da Serra de Dornes, para vender em lojas gourmet. Além da produção, Ildebrando dedica-se ao estudo e à descodificação da linguagem das abelhas: “Elas entendem os nossos gestos. Temos de lhes dizer bom dia e boa tarde todos os dias”.
Antes de subirmos ao santuário e Igreja de Nª Sª do Pranto, vamos parar na pequena adega onde José Moita, 86 anos, recebe amigos e visitantes interessados em provar a sua ginja. A partir das suas uvas produz também vinho branco, tinto e abafado: “O dia das provas é sempre o 1º de Novembro”, diz-nos satisfeito, no seu alpendre, com uma vista única sobre o grande lago.
Subindo as ruas empedradas, chegamos agora ao largo do santuário. A Torre Templária foi construída por Gualdim Pais, a mando de Afonso Henriques, para defesa da linha do Tejo, em cima das ruinas de uma antiga torre romana. Ao lado, a Igreja de Nª Srª do Pranto, datada de 1285, mas alterada significativamente no século XV, é de visita imprescindível, por integrar um órgão de tubos do séc. XVIII, restaurado e em funcionamento, os tetos pintados, os azulejos do séc. XVII e numerosos quadros e figuras religiosas.
Diz a lenda que um cavaleiro, instruído pela rainha Santa Isabel encontrou no meio da floresta uma imagem da Virgem Maria com Jesus Cristo, morto, nos braços. A rainha mandou então construir uma ermida neste lugar, a que foi dado o nome de Igreja de Nª Sª do Pranto. Anualmente, mais de 40 freguesias de vários concelhos limítrofes, fazem as suas peregrinações religiosas (os círios) a partir da Páscoa e com o ponto mais alto a 15 de Agosto, dia de festa grande em Dornes.
Informações de viagem
Onde comer
O Rio: É o restaurante mais próximo do centro da aldeia. Está aberto há três anos e serve peixe do rio grelhado ou frito. O pudim de abóbora com nozes, receita da casa, é o doce recomendado. Tel. 249 366 411
Fonte de Cima: Localizado à entrada de Dornes vai buscar ao rio o peixe necessário para os pratos mais requisitados: carpas, barbos, achigãs, grelhados ou fritos, caldeirada e ensopado. Tel. 249 366 302
Nossa Senhora do Pranto: A apenas três quilómetros de Dornes, o restaurante oferece pratos como peixe do rio com migas, sopa da pedra ou leitão assado no forno. O restaurante está integrado numa residencial que dispõe de 11 quartos e uma praia privada para o lago da barragem. Tel. 249 366 447, lubrizezere.com
Onde dormir
Casa da Eira: É uma casa de campo localizada no lugar de Cagida, muito próximo de Dornes. Dispõe de dois quartos, sala com lareira e uma espaçosa área exterior para lazer ou jogos. Preços a partir de 80€. Tel. 934740848, dornestur.pt.
Casa da Avó: Localizada mesmo junto ao cais, na zona mais central de Dornes, dispõe de dois quartos. Preço a partir de 50€. Tel. 2962912485
Ca’D’Oro: Situada em Cagido, esta casa de alojamento local, pode albergar cinco pessoas, dispondo de dois quartos. Tel. 214879129
Para mais informação visite cm-ferreiradozezere.pt
Artigo originalmente publicado na revista Food and Travel Portugal
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