Estamos agachados atrás dela, em frente ao mural. Ao nosso nível só vemos sapatos, pés e pernas. E ouvimos a pressa que trazem: é a pressa do mundo.

- São só tijolos pintados de azul e amarelo.

Era o que, certamente, teríamos ouvido: se ganhassem som os pensamentos dos que por nós passavam, sem hesitar o passo num possível "brandeio".

Nós parámos - ela parou-nos -, não teremos chegado tão rápido quanto os pés que nos ultrapassaram, não teremos ganho a corrida, mas ganhámos. Ganhámos: a noite estrelada de Van Gogh, mesmo de dia. Ganhámos: um museu na rua, uma das maiores obras ali oferecida a céu aberto, numa das ruas da Art Zone 798, em Pequim; sem pagar bilhete, sem tempo de espera para a ver e sem um fila desmedida de outros olhos - cobertos por telemóveis - para registarem o momento.

Talvez exatamente por essa razão, pela ideia de que só o que se paga caro tem valor e esta obra que aqui se mostra não está num dos museus mais renomados do mundo, o seu autor é desconhecido e como é de livre acesso a todos, por igual, não merece tempo, não merece olhos, não merece nada. Ou talvez mereça tudo, para quem olha pela primeira vez, para quem olha com olhos livres e puros.

Ela parou e disse: ‘Tantos soles’ (sóis). E viu bem, um céu agitado entre a vontade de ser dia e a vontade de ser noite e lá em baixo, na pequena vila, dorme a calma que mora também cá dentro: quando a vejo paciente a olhar para esta obra de arte, sem saber que representa uma das mais apreciadas no mundo.

Olha pelo prazer de oferecer aos olhos as coisas mais bonitas, ela não viu tijolos pintados, ela viu a noite estrelada neste museu-rua. E ficámos a vê-las: à noite estrelada e à ela. Ficámos (como sempre ficamos) no nosso lugar atrás dela: e ela não sabe da beleza desse lugar, da forma como a sua presença, repete (em mil) a beleza do que vemos. E ali falámos de sol e de estrelas, de azul e amarelo. Enquanto, com os seus dedos, ela apontava e contava cada estrela desta noite, nós: ganhávamos o dia.

Este artigo foi originalmente publicado em Menina Mundo