Por Emília Matoso Sousa

Hoje, foi dia de vestir os impermeáveis. De manhã, chovia copiosamente e por isso decidimos esperar um pouco antes de avançar. Ser-se apanhado pela chuva a meio da jornada é uma coisa, iniciá-la com o céu a cair-nos em cima é outra! Pouco depois, já sem chuva, mas com o cinzento chumbo a dar cor ao dia, lá fomos nós por caminhos e travessas, mais ou menos rurais, com uma disposição idêntica à de quem faz um passeio num lindo dia de primavera.

O primeiro ponto de interesse encontrámo-lo em Santa Maria de Cruces: o Santuário de La Esclavitud que, com as suas altivas torres, é bem visível na paisagem. Dois eventos, ou lendas, estarão na sua origem. O primeiro, em 1582, quando o reitor da paróquia local, miraculosamente, se salvou de morrer esmagado por uma árvore. Agradecido a Nossa Senhora, encomendou uma imagem da Virgem com o Menino, que seria colocada sobre uma fonte ali existente, a qual passou a ser conhecida como Fonte Santa. O segundo aconteceu em 1732, quando um homem, que padecia de doença grave, ali bebeu água e se curou. Por se ter libertado da ‘escravidão’ do seu mal, fez uma doação à Virgem e espalhou a notícia. A partir daí, multiplicaram-se os devotos e as doações, as quais permitiram a construção desta igreja Mariana, cuja construção ficou concluída em 1743, e onde se colocou a imagem a que se deu o nome de Nossa Senhora da Escravidão.

De Padrón a Santiago de Compostela
Os últimos 25km até Santiago de Compostela foram feitos debaixo de um céu de chumbo créditos: Emília Matoso Sousa

Passámos ainda por outra igreja interessante, Sta Maria das Cruces, a que se seguiu nova incursão por caminhos semeados, predominantemente de milho, uma cultura muito comum por estas bandas. A chuva continuou a aparecer e a desaparecer sem, no entanto, beliscar o nosso ânimo.

Hoje, mais do que nos outros dias, a emoção está ao rubro. Para nós, a celebração da chegada estava associada à celebração de mais um aniversário de casamento, numa planeada associação de memórias que nos iriam trazer os ecos da nossa primeira viagem a dois... a Santiago, pois então! A paisagem vai alternando entre caminhos de terra, estradas secundárias, pequenas localidades, vilas e bosques. Não é a etapa mais bonita e obriga-nos a algumas subidas bem esforçadas, mas já só pensamos no momento em que vamos avistar, ainda que ao longe, as torres da Catedral. Quando entramos no concelho de Teo, com um património histórico muito interessante, estamos no último troço do Caminho. Na Rua dos Francos, há um cruzeiro gótico do séc. XV, provavelmente um dos mais antigos da Galiza. Continuamos a subir e passamos por Rio Tinto, Pedreira, A Grela, Milladoiro… já falta pouco. Os últimos quilómetros, quase sempre em subida, começam a 'acordar-nos' novamente os músculos. 'Força!', vão dizendo os peregrinos que passam. 'Está quase!'.

A Catedral de Santiago de Compostela
Meta à vista: a Catedral de Santiago de Compostela créditos: Emília Matoso Sousa

As indicações para a entrada em Santiago tornam-se, agora, um pouco confusas, podendo fazer-se tomando dois caminhos diferentes. Nós optámos por seguir a indicação para a esquerda, um percurso aparentemente mais curto. Mais uma subidinha, rasgadinha q.b., e entrámos no miolo urbano da cidade. As setas amarelas do Caminho são aqui quase inexistentes, o que reclama alguma atenção e sentido de orientação.

Sabemos que o casco velho se entra, no caso de quem fez o Caminho Português, pela Porta Faxeira e é para lá que nos dirigimos.

Chegados ao Parque da Alameda, já conseguimos ter um vislumbre das ruas estreitas e antigas… Estamos à distância de uma passadeira. O semáforo fica verde e uma voz anuncia “Porta Faxeira”. Agora sim, estamos quase lá. Sabemos de cor onde fica a Praza do Obradoiro. Várias vezes, vi chegarem peregrinos àquela praça maravilhosa e mágica. E em todas essas vezes, pensei que um dia haveria de ser eu a chegar também. E hoje, 30 anos depois, ali estava eu!

Santiago de Compostela
O passaporte carimbado do Caminho português a Santiago de Compostela créditos: Emília Matoso Sousa
haverá alguma imagem capaz de traduzir o turbilhão de emoções que se sente quando se chega e se vê a Catedral, quando se olha em volta e se vê felicidade e alegria nas caras dos peregrinos

Parou tudo!!! Diz-se que uma imagem vale mais do que mil palavras… mas haverá alguma imagem capaz de traduzir o turbilhão de emoções que se sente quando se chega e se vê a Catedral, quando se olha em volta e se vê felicidade e alegria nas caras dos peregrinos, quando tudo à nossa volta é celebração e festa? Não, não há!

E era chegada a altura de pousar a mochila e deitar-me no chão em modo ‘Descanso da Guerreira’. E também do ‘Guerreiro’.

Santiago de Compostela
A Emília e o marido depois de completarem a sua caminhada de 6 dias até Santiago de Compostela créditos: Emília Matoso Sousa

Podem começar a ler o relato da Emília desde o início aqui.

A Emília Matoso Sousa é a autora do blog Caminhos Mil, onde escreve sobre as suas caminhadas pelo país. "Apenas pretendo guardar algumas das histórias e memórias que trago desses percursos e partilhá-las com quem, como eu, aprecia as coisas simples da vida..", conta.