Por Emília Matoso Sousa

De Caldas de Reis, sai-se pela ponte sobre o rio Bermaña. Mais uma ponte vinda de outras eras, provavelmente romana, mas reconstruída na época medieval. As águas termais fizeram o seu trabalho e, de manhã, levantámo-nos cheios de energia. Esperava-nos uma das etapas mais belas do Caminho. ‘Preciosa’, como dizem os espanhóis, mágica, de acordo com os mais místicos. Entre o mágico e o precioso… é difícil decidir, digo eu. A Natureza no seu estado mais puro é algo que me transporta, de facto, para outras dimensões.

Na tradição jacobeia, Padrón é uma cidade icónica. Segundo a lenda, foi lá que, entrando pelo rio Sar, terá aportado a barca que transportava os restos mortais do Apóstolo desde Jafa (em Israel), os quais seriam depois levados para um local remoto, hoje Santiago de Compostela, onde se viria a edificar a catedral. A pedra, ou pédron, usada para amarrar a barca, estará na origem do nome da cidade e está colocada no altar na Igreja de Santiago de Padrón, sendo local de culto. Há, em Padrón, outra paragem obrigatória, um pouco menos ‘católica’, é certo, mas já lá vamos…

Igreja Santa Marina de Carracedo
A bonita Igreja Santa Marina de Carracedo créditos: Emília Matoso Sousa

Para os apreciadores de aspetos mais mundanos, Padrón será sempre a terra dos pimentos com o mesmo nome. Deles se diz que unos pican y otros non, sendo certo que marcam presença em qualquer menu galego que se preze.

Depois de se sair de Caldas de Reis, e de uma breve passagem pela N550, seguimos, entre estradas secundárias e terrenos rurais, até Carracedo, onde podemos apreciar mais uma bonita igreja, a de Santa Marina. De um modo geral, todas as igrejas do percurso estão abertas para que os peregrinos as possam visitar ou recolher carimbos. A recolha de carimbos é um 'ritual' do Caminho quase engraçado. A obrigatoriedade de dois carimbos diários no 'passaporte' ou 'credencial' do peregrino para a obtenção da Compostela, faz com que todos, jovens e menos jovens, os procurem em todo o lado. Um pouco mais à frente, uma placa anuncia a proximidade do Museu do Labrego, nome curioso e engraçado que mais não é do que uma área de descanso para o peregrino.

O ponto mais alto do dia foi a passagem pelo Monte Albor, que nos mergulha dentro do tal bosque ‘encantado’. Um bosque deslumbrante, daqueles que parecem ilustrações de livros de histórias infantis. Vibrações do além (há quem jure a pés juntos que as sente) não senti, mas que las hay, las hay e, por isso, se de repente um gnomo saltasse de trás de uma árvore, eu não acharia estranho…

Monte Albor
Monte Albor, um bosque deslumbrante, daqueles que parecem ilustrações de livros de histórias infantis. créditos: Emília Matoso Sousa

Em San Miguel de la Valga, paragem seguinte, uma grande igreja sobressai na paisagem. Segue-se Pontecesures, já próximo de Padrón. Pouco interessante como localidade, não fora a sua ponte, dita romana, mas sem quaisquer marcas desse tipo de construção. Tê-lo-á sido em tempos? Há quem garanta que sim. É, no entanto, uma estrutura esteticamente interessante, sendo considerada símbolo de união entre as províncias de Pontevedra e de A Coruña, separadas pelo rio Ulla, do qual é afluente o Sar que, a partir de agora, nos acompanhará.

Chegamos a Padrón. A entrada na cidade faz-se pelo Paseo do Espolón, uma agradável alameda junto ao Sar, ladeada por enormes plátanos. Nos seus extremos ostenta duas estátuas que homenageiam dois vultos literários galegos, de renome internacional. Rosália de Castro, escritora e poetisa (1837-1885), nascida em Santiago de Compostela e considerada a fundadora da literatura galega moderna; e Camilo José Cela (1916-2002), vencedor do Nobel da Literatura em 1989. No topo da alameda ergue-se a Igreja de Santiago de Padrón, a tal onde se encontra a pedra que, diz-se, prendeu a barca. A completar este ‘postal’, é ainda possível apreciar a Ponte Carmen, sobre o Sar e, lá no alto, a imponente igreja do Convento Carmen.

Padrón reserva-nos uma surpresa bem divertida. É que, no largo da igreja, existe um bar, o Don Pepe 2, onde se pode ‘tapear’, cujo dono recebe calorosamente os peregrinos (e peregrinas) com beijos e abraços. Não há quem lhe resista, nem aos ‘chupitos’ de Dr. Zaz, um licor de pimentos de Padrón que promete, e cumpre, picar sempre. Obrigada, Pepe, por este momento ‘diferente’. Sem dúvida, uma visita imperdível!

A caminhada de hoje não terminava aqui, já que o alojamento estava ainda a dois quilómetros. Por isso, depois de um excelente almoço ajantarado na Pulperia Real, que nos fora recomendada por um amigo, voltámos ao terreno.

Don Pepe 2
No Don Pepe 2, a provar os ‘chupitos’ de Dr. Zaz créditos: Emília Matoso Sousa

Por esta altura, sentimentos controversos tomavam já conta de nós. O Caminho aproximava-se do fim, mais uma etapa e entraríamos na Plaza do Obradoiro. Íamos conseguir, já o sabíamos. A vontade de chegar era imensa, como imensa era a vontade de continuar. Não queríamos que terminasse. Este era, aliás, o sentimento de quase todos os peregrinos com quem tínhamos vindo a falar nestes dias. Mais uma ‘partidinha’ do tal Espírito do Caminho? Talvez. O Caminho nem sempre é fácil, nem sempre é bonito, exige força, exige vontade, e chega a desafiar os limites da nossa resistência. Confronta-nos com alguns dos nossos medos, obriga-nos a fazer escolhas nem sempre confortáveis. Dores, bolhas e cansaço podem surgir. Vontade de desistir? Às vezes. Que necessidade tinha eu de me meter nisto? Esta é, muitas vezes, a pergunta. Mas se a motivação for grande, se o objetivo for superarmo-nos e pormo-nos à prova, então nada nos demove. E esta é outra das lições, porventura a mais importante, que levamos desta empreitada: é connosco que devemos competir, não com os outros.

Assim, apaziguados os estômagos, com um delicioso pulpo, regado com um fresquíssimo Albariño, bebido por malgas, pois então, foi hora de ‘vestir’ a mochila (nesta altura ela já é parte integrante do nosso corpo) e zarpar…

Íamos conseguir, já o sabíamos. A vontade de chegar era imensa, como imensa era a vontade de continuar. Não queríamos que terminasse.

Só mais dois quilómetros. Para quem já tinha feito 20, o que são dois quilómetros? Afinal, o longe e o perto dependem da nossa perceção…

Aproveitámos para visitar mais alguns pontos de interesse, agora em Iria Flávia. O Caminho está repleto deles, demonstrando, a cada momento, a razão pela qual estes são itinerários culturais e espirituais. Desde logo, a Igreja de Santa Maria, uma impressionante e robusta construção de eras longínquas, mas reconstruída no séc. XII. O templo primitivo datava do séc I, tendo sido mandado destruir por Almansor em 999. Foi colegiata até 1851, altura em que foi reduzida a paróquia. A austeridade do seu aspeto exterior esconde um interior magnífico, embora não excessivo, com destaque para a riqueza do altar. Um contraste que a torna deveras incomum e surpreendente. No cemitério que a rodeia é ainda possível ver túmulos medievais, prova da sua antiguidade. É também aqui que está sepultado o ‘nobilizado’ escritor Camilo José Cela, por ser esta a sua terra natal.

Igreja de Santa Maria
O interior da Igreja de Santiago de Padrón, onde pode ser vista a coluna de pedra que estará na origem do nome da cidade créditos: Emília Matoso Sousa

Foi também este o local escolhido para acolher a Fundação Camilo José Cela, à qual o escritor doou o seu legado literário e artístico, visando a sua difusão e conservação. A sua coleção de manuscritos, o seu epistolário, a sua biblioteca pessoal e as edições da sua obra, bem como estudos sobre a mesma, fazem parte do espólio aqui depositado. Entre outras coleções de interesse, aqui estão também obras de pintores como Picasso ou Miró. Por ser domingo, estava encerrada, pelo que, com muita pena, não pudemos visitar.

Uma nota breve sobre Iria Flávia, que hoje mais não é do que um pequeno bairro, apesar de ser um dos locais com mais História na Galiza, e um dos pilares fundamentais da tradição jacobeia. Na época do domínio romano, terá sido uma cidade importante, graças ao seu grande porto fluvial na confluência dos rios Sar e Ulla. Reza a tradição que foi em Iria Flávia que o Apóstolo Santiago Maior terá pregado pela primeira vez durante a sua estadia na Hispânia. É o que se diz…

Podem começar a ler o relato da Emília desde o início aqui ou continuar a ler aqui.

A Emília Matoso Sousa é a autora do blog Caminhos Mil, onde escreve sobre as suas caminhadas pelo país. "Apenas pretendo guardar algumas das histórias e memórias que trago desses percursos e partilhá-las com quem, como eu, aprecia as coisas simples da vida..", conta.