Naqueles dias de verão, era frequente ver rapazes a mergulhar no rio Neretva, numa queda livre de 23 a 25 metros, consoante o nível da água. A cada salto, era inevitável a ideia de que, se o medo, por um lado, nos alerta de um possível dano físico ou psicológico, também nos apetrecha do suporte motivacional necessário para debelar novos desafios e desenvolver aprendizagens. Os sobreviventes sabem disso e vivem-no como mais ninguém o consegue. Percebem rapidamente que a nossa existência vai muito além do que se espera da vida, para se centrar no que a vida espera dos indivíduos. Conscientes da transitoriedade da existência humana, alcançam que os dons e as aptidões têm de ser urgentemente descobertos, aperfeiçoados e colocados a serviço dos outros e da subsistência. E mesmo que interrompidos, várias vezes, por apartes ora desorientados, ora irados e até mesmo cobardes, voltam sempre à ideia mãe de que só na procura de um sentido, propósito ou objetivo conseguimos vislumbrar um futuro visível e tangível, devolvendo-nos, assim, entusiasmo de mergulhar, mesmo que com medo, nele.
Estou certa que este tipo de pensamento pairará na história do rio Neretva, essa fronteira natural entre as distintas frações de muçulmanos bósnios, sérvios e croatas. É esta coexistência pacífica entre as duas margens, que tornam Mostar num símbolo excecional de tolerância e um exemplo de sobrevivência face a revés devastadores, sabendo-se unidos por uma ponte que todos recebe e acolhe.
Ali, todos os caminhos levam inevitavelmente à antiga ponte, Stari Most. Erguida em 1459, sob o Império Otomano, dando origem ao próprio nome da cidade, esta ponte de arco único permaneceu na sua forma original até 1993, altura em que foi destruída durante a Guerra da Bósnia. Algo que os homens teimam em relembrar, perpetuando através da inscrição da frase "Don't forget '93" perto dali, assim como em outros lugares da cidade. Em 2004, graças a um esforço internacional promovido pela UNESCO, a ponte velha foi reconstruída, além de outros edifícios da zona histórica desta cidade da Bósnia e Herzegovina.
Em ambas as margens, é evidente a influência turca, quer na arquitetura, quer no ambiente de bazar que se vive nas ruas empedradas, pilhadas de vendedores e restaurantes cujos empregados, vestidos com trajes tradicionais, saúdam os transeuntes e os tentam convencer a entrar e a experimentar as imensas especialidades locais da Bósnia. Desde logo, provando o ćevapi (também chamado de ćevapčići, uma expressão que diz muito sobre a ligação afetiva que os bósnios têm com este petisco), uma espécie de kebab bósnio absolutamente delicioso, ou seja, pequenos croquetes de carne de borrego e vaca, geralmente misturadas, que são grelhados e servidos com pão chato (somun) e, por vezes, com cebola fresca picada e um molho à base de iogurte. Por outro lado, temos também o japrak, consistindo em rolos feitos com folhas de raštika, uma variedade de repolho local, recheados com carne e arroz, muitas vezes servidos com puré de batata e iogurte ou outros molhos; ou o dolma (legumes, como beringela ou pimentão, recheados com carne ou arroz e temperos). Para finalizar um manjar na Bósnia, de sobremesa é obrigatório desfrutar de uma baklava, um pequeno bolo com camadas de massa filo repleto de nozes, xarope e/ou mel. O seu sabor doce intenso obriga a dois convites perfeitos: a um café turco para os mais fortes, e a mais um passeio para digerir!
O pátio fechado da Mesquita Koski Mehmed Pasa, com a sua fonte, não permite adivinhar as vistas desimpedidas que se podem desfrutar do topo do minarete. Simples, mas bonita, vale principalmente pelas encantadoras vistas sobre a cidade. Das mesquitas da era Otomana que se vislumbram no horizonte de Mostar, todas foram destruídas durante a guerra, à exceção da Mesquita Roznamedzi Ibrahimefendi, que sobreviveu relativamente incólume à artilharia.
À medida que se deixa o centro para trás, sem grandes preocupações de orientação, ou não tivéssemos o rio sempre como ponto de referência, descobre-se quase uma outra cidade. Para além dos limites da parte antiga, encaramos as cicatrizes da guerra a peito aberto. Casas em ruínas e fachadas de prédios cravadas de balas recuperam uma memória não tão distante.
Ao entardecer, as luzes dos restaurantes sitos acima do vale íngreme do rio Neretva refulgem e os candeeiros de rua aquecem os edifícios de pedra cinza. Há quem lhe chame esperança, outros superação…
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