Para o seu "gap year", a Mariana propôs-se a atravessar a Europa de sul a norte e a partilhar, através da escrita e da ilustração, as suas impressões de cada etapa da sua viagem.
Arte como terapia em Calais (primeira parte)
Por Mariana Almeida
Foi já no “Le Nord Pas-de-Calais”, que reencontrei o tão familiar conceito de uma zona costeira. E em dias que nos davam tréguas, permanecíamos sentados de frente para o mar, que estranhamente tinha tanta ondulação como as pequenas dunas que se formavam no extenso areal. Abraçávamos os pequenos privilégios que nos eram oferecidos: sob o céu azul, que era sem exceção pontilhado por gaivotas que esperavam as primeiras “frites”, embebidas em vinagre, que aterrassem no chão, enquanto o sol nos aquecia a pouca pele descoberta, inconscientemente plantávamos um breve esquecimento sobre a razão pela qual nos encontrávamos ali. Porém, no horizonte, repousava a lembrança constante do nosso propósito em Calais, a silhueta da ilha de todas as esperanças, Inglaterra.
Calais
Entre a crença e o ceticismo, entre a tensão e a compaixão, entre a vida e aquilo que acreditamos ser a morte, permanece uma terra quase tão normal como tantas outras. Calais na sua áspera, empobrecida e genuína forma de ser, é marcada pelo francês que vê no seu horizonte as arribas esbranquiçadas do inglês, pelas pessoas que procuram a oportunidade de realizarem mais uma travessia que se traduz num possível futuro e por nós, voluntários, que reconhecemos um horizonte carregado de esperança, adversidade, resistência e desigualdade.
É uma cidade que permanece exposta a uma série de circunstâncias que se desenvolveram ao longo das últimas décadas em redor do fluxo migratório. A degradação existente é fruto das ações implementadas pelos países que compõem esta fronteira, com leis transitórias e desumanas como resposta a um cenário extremamente delicado que carece de uma urgência na adaptação do território em resposta às necessidades básicas de apoio humanitário.
Deixo aqui o testemunho dos dois meses que vivi como voluntária, naquilo que poderemos descrever como uma das várias crises humanitárias às portas da Europa.
Em março deste ano, estava eu no meu segundo mês em Calais, quando se ficou a saber que um novo acordo entre o primeiro-ministro britânico Rishi Sunak e o presidente Emmanuel Macron tinha sido anunciado. Inglaterra comprometia-se a pagar a França mais de 500 milhões de euros ao longo dos próximos três anos para prevenir e combater a migração ilegal.
Este tipo de investimento, infelizmente, não se reflete em nenhum tipo de solução, são milhões de euros que acabam por se traduzir no aumento do número de policiais no centro da cidade e no reforçar das patrulhas da fronteira.
A meu ver, a presença desmedida da força policial é um elemento que adiciona uma camada disruptiva no défice social já existente. Há uma constante estratégia de desmobilização contra as pessoas que chegam e que não têm infraestruturas suficientes que lhes proporcionem o apoio nas condições básicas de abrigo, estas acabam por ficar em acampamentos improvisados, que mais tarde são bloqueados na tentativa de contrariar a permanência dentro da cidade. Este tipo de ações não só implementam o receio e o desconforto em todos nós, que permanentemente e coabitamos neste centro urbano, como também reduz o carácter de interesse cultural e social na cidade.
França continua a adaptar estratégias em prol da expulsão do território e não parece interessada em criar resolução. Recebe anualmente do país vizinho uma quantidade absurda de dinheiro para combater as travessias ilegais, consequentemente mantendo a permanência de pessoas que procuram asilo num território que as rejeita. As pessoas que chegam a Calais, permanecem suspensas numa corda muito fina, num abismo que ameaça se permanecerem mas que também as proíbe de saírem.
Poderia tratar-se de uma cidade que investe em respostas ao fluxo migratório, no entanto, não existindo investimentos nesse sentido, ou até interesse para que estratégias de acolhimento sejam implementadas, Calais permanece na sua génese um lugar deixado ao abandono, ignorado pelo próprio país que alimenta a continuidade de uma realidade de risco, de receio e de desumanidade.
Definição de fronteira
Durante os meses de inverno não é expectável que haja tanta afluência de circulação de pessoas na procura de realizar a travessia. No entanto, nas primeiras semanas de janeiro custava a acreditar que aquela era a mesma zona que descreviam como o fim do mundo, onde os dias se enchiam de fortes ventos e aguaceiros. O certo é que estes meses de inverno no início do ano estavam a dar tréguas, o mar estava calmo, era o “Mediterrâneo” do norte da Europa. Este sossego na água significava agitação em terra, as chegadas e as partidas que por mais ilegais que sejam representam o desespero de quem procura uma vida com futuro.
Podia ser eu, podias ser tu, caso a guerra batesse à porta do nosso país, ou se a seca nos matasse de fome, ou se as cheias nos afogassem. Quem deseja ir para longe do seu país, da sua casa, da sua família? Estas são pessoas que permanecem sem reconhecimento de identidade, sem propósito, muitas das vezes sem o apoio para obter as necessidades básicas humanas, isto não se trata de uma escolha, o exílio não é uma escolha.
Infelizmente, nem todas as travessias nesta fronteira são bem sucedidas com um mar calmo. O conceito de fronteira está extremamente bem definido nos seus limites, quando se trata de impedir o outro de entrar no nosso território. Mas se colocarmos a perspetiva numa chamada de ajuda proveniente de um barco que se está a afundar nessa mesma fronteira, a definição do limite deixa de ser tão clara, de um momento para o outro ninguém sabe exatamente qual é o seu limite e o limite do outro. E enquanto se definem limites entre terras, minuto após minuto, entre nações, minuto após minuto, numa fronteira, minuto após minuto, um barco bate no fundo e perdem-se vidas. Nesta fronteira já se perderam mais de 209 vidas.
Esta é a primeira parte do artigo da Mariana sobre a sua experiência em Calais. A segunda parte será publicada brevemente. Previamente, escreveu sobre a sua estadia em Paris.
Sobre a Mariana e o seu projeto
O Projeto Arda (Ao Ritmo Da Arte) chega-nos diretamente de Odemira desenhado por Mariana Almeida que se vai aventurar pela Europa durante 8 meses depois de vencer a segunda edição do “Emunicipa-te”. Também pode ser acompanhado no Instagram.
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