Texto: Ema Mateus

Mais um mês de viagem e desta vez passado em Arraial d’Ajuda, no litoral sul da Bahia. Não segui o plano que tinha delineado, novamente. As duas semanas que planeei, depressa se transformaram em seis. Sou muito boa a fazer planos, mas também sou muito boa a alterá-los. Na verdade, o que posso concluir disto é que me descobri adepta do conceito slow travel, um estilo de viagem onde o foco são as experiências e não apenas cumprir a check list dos pontos turísticos mais importantes.

Gosto de conhecer todas as ruas e calçadas e gosto de reconhecer os rostos dos moradores. Gosto de descobrir novos caminhos e novos lugares, para poder escolher os meus preferidos e retornar a eles vezes sem conta. Gosto de ter vários olhares sobre as coisas e de conseguir captá-las com todos os sentidos. Gosto de ir construindo, ao longo do tempo, uma memória que seja próxima da realidade, ou pelo menos próxima da minha perspetiva. E gosto de criar rotinas e de criar os meus espaços de conforto.

No fundo, gosto de criar a sensação de casa onde quer que esteja e isso demora o seu tempo. Por isso, dei tempo a Arraial d’Ajuda e em troca, recebi o que eu pedi.

Ao sabor do vento num cantinho especial da Bahia
Ao sabor do vento num cantinho especial da Bahia Arraial d’Ajuda créditos: Ema Mateus

Arraial é um charme, é uma cidade com alma de vila. Repleta de natureza, música e diversidade cultural, é apelidada de "Arraial d’Ajuda, a Esquina do Mundo". Estando na Bahia, os destaques continuam a ser os mesmos: o ritmo (a música, a dança…), a arte, a culinária e as pessoas. Disseram-me que “cá tem de tudo” e tem mesmo. Pode ser calmo e relaxante como pode ser agitado e divertido, só depende da vontade e da intenção de cada pessoa.

Sinto que em Arraial não existe uma padronização e grande parte do seu encanto vem daí. Cada casa tem a sua altura, cor e formato próprio. Não há prédios nem construções modernas, o mais alto que se encontra são as árvores. Ainda assim, é uma cidade muito turística e por isso tem bastantes alojamentos e comércio. A sensação que dá é que as ruas são intercaladas por uma pousada, um bar, uma loja, um restaurante e assim sucessivamente. No entanto, todos estes estabelecimentos conjugam-se na perfeição, mesmo sendo tão diferentes. Aqui não há espaço para a monotonia ou para o minimalismo, e mesmo com esta explosão visual, nada é demasiado ou caótico.

Arraial d’Ajuda
Arraial d’Ajuda Arraial d’Ajuda créditos: DR

Pedi a uns amigos para me descreverem Arraial d’Ajuda numa só palavra e a lista de palavras que recebi foi “diversidade, convivência, intensidade, bagunça, conexão, troca”. Concordo com eles.

A minha vinda para aqui não foi planeada ou pelo menos intencional. Sabia que queria conhecer o sul da Bahia, por isso candidatei-me a vários voluntariados na zona e acabei por conseguir um em Arraial d’Ajuda. Vim sem saber que estava prestes a viver numa cidade que faz parte da Costa do Descobrimento, o local onde os portugueses chegaram pela primeira vez, há 523 anos. Tanto em Arraial d’Ajuda, como em Porto Seguro e em Santa Cruz Cabrália, há muitas evidências desse acontecimento. Para além da arquitetura colonial, existem vários monumentos e igrejas que fazem alusão a isso e até pude ver várias bandeiras de Portugal hasteadas. Logicamente, criou-se um turismo em volta disto e assim como tudo, tem o seu lado bom e o seu lado mau.

Pela minha experiência, daquilo que vi e percebi, sinto que há muito desconhecimento sobre os povos originários do Brasil. Acho que há uma desresponsabilização e até uma certa falta de respeito dos turistas em relação à cultura indígena. Acessórios indígenas não são fantasias e as pessoas não são manequins. Tratar uma cultura como mercadoria e glorificar os acontecimentos passados não me parece correto, face às consequências criadas e repercutidas até aos dias de hoje. Este foi um dos assuntos das longas conversas que tive na Casa Rosa, o hostel onde voluntariei. Cada pessoa tem o seu ponto de vista, reflexo do seu contexto e experiências de vida, mas ainda assim, a opinião em relação a este tema foi consensual. Há que desconstruir crenças antigas e não perpetuar atitudes e comportamentos opressores.

Esta troca construtiva foi um dos motivos para gostar tanto da minha estadia na Casa Rosa, mas certamente não foi o único. Assim que cheguei, percebi que não era só um simples hostel, era também uma incubadora de projetos e um espaço que valorizava muito as conexões e as particularidades de cada um.

Foi lá, que pela primeira vez na minha vida convivi com várias pessoas com TDAH (ou PHDA, perturbação de hiperatividade e défice de atenção). Provavelmente já convivi com muitas, mas ou não eram diagnosticadas ou simplesmente não falavam disso. Eu mesma só fui diagnosticada o ano passado e também não é a primeira coisa que digo quando me apresento (o que seria? “Ema, 22 anos, portuguesa, geminiana com ascendente e lua em aquário, TDAH”, até que não era má ideia, acho que resume e explica muita coisa). Mas adiante, na Casa Rosa, éramos cinco com TDAH e apesar das diferenças, as semelhanças foram as que mais se destacaram. Este sentimento de identificação não é coisa que me aconteça com muita frequência. Quando dava por nós, parecia que estávamos num grupo de apoio para pessoas com TDAH. Se calhar estes grupos até existem, não sei, nunca pesquisei sobre o assunto. Mas sei que foi bom fazer parte deste “grupo”, foi bom partilhar e perceber que há quem nos consegue entender e por isso, só por aí, já foi uma experiência muito enriquecedora.

Acho que as viagens são sobre estas experiências, que nos moldam e que preenchem espacinhos que até então não sabíamos existir. Portanto, ainda bem que não segui o plano e que me permiti viver e criar raízes em Arraial d’Ajuda. Raízes essas que nasceram num ambiente de diversidade de pensamentos, culturas e pessoas. É da diversidade que nascem as trocas mais significativas e que se desenvolvem as conexões mais genuínas. A diversidade é um bem que deve ser valorizado, respeitado e cultivado!

Projeto “Uma vida, Um planeta”

Este projeto chega-nos diretamente da parceria entre a Gap Year Portugal e a NOVA SBE. A vencedora, Ema Mateus, traçou um plano de viagem e autodescoberta de 190 dias rumo ao Brasil, Peru e México para trabalhar extensivamente o impacto sustentável que quer ter nesses países. Podem seguir no Instagram @umavidaumplaneta.

Emunicipa-te

                O Emunicipa-te é um concurso promovido pela Associação Gap Year Portugal e financiado por câmaras municipais, neste caso, a Câmara Municipal de Odemira, que premeia um/a ou dois/duas jovens com uma bolsa para realizarem o seu gap year de 6 a 10 meses. Se a candidatura for individual o prémio é de 5.000€ e se for conjunta o prémio é de 6.500€. O regulamento pode ser revisto e a candidatura pode ser feita no site da Gap Year Portugal. Vai ser valorizado, por exemplo, o rigor na elaboração do orçamento, a motivação, incorporação da sustentabilidade como uma prioridade, a originalidade do projeto, entre outros.