Excerto do capítulo VI do livro "Volta aos Açores em 15 dias", de José Pedro Castanheira
12 de maio
A travessia marítima de ontem, entre São Miguel e a Terceira, prometia ser auspiciosa, com os ventos a soprarem de feição e a levarem o Avanti a navegar, feliz e lampeiro, apenas com as duas velas. Mas o cenário cedo se complicou — e de que maneira! Os deuses tomaram‑se de fúria e começaram a soprar mais do que era necessário e suposto, e o mar revoltou‑se sobremaneira. O mal de mer voltou a atacar parte da tripulação, entre os quais este escriba, que até então havia escapado incólume. Culpa exclusivamente sua, porque, sobranceiro, fez e teimou naquilo que sabe que nunca deve ser feito quando o mar, acossado, se desorienta. Ou seja: fechou‑se um bom par de horas no interior da cabina, praticamente ao nível da linha de água ou mesmo abaixo dela, a escrever no iPad mais umas páginas épicas deste Diário. Inevitável, acabou por sucumbir ao enjoo, tanto mais que, confiando nas suas superiores qualidades de lobo‑do‑mar, se dispensara de tomar um comprimido de cinarizina, que qualquer marinheiro que se preze sabe que é o princípio ativo do Stugeron Forte, medicamento cuja bula afiança que «previne o enjoo», «alivia a tontura» e as «náuseas e vómitos» — remédio, em suma, que deve fazer parte da caixa de primeiros e mesmo segundos socorros de qualquer embarcação. Concluído mais um escrito, ainda subiu para o exterior, para desanuviar e apanhar ar fresco, mas acabou por ficar encharcado pelos borrifos de uma onda mais atrevida. Algo envergonhado e furioso consigo próprio, recolheu ao camarote para mudar de roupa e digerir a má disposição, enquanto os seus camaradas lutavam corajosamente contra os ventos e as ondas.
Sonolento e tendo desligado as suas próteses auditivas — uma das raras vantagens de quem padece de orelhas moucas: poder escapulir de vez em quando do mundo que o rodeia… —, infelizmente não lhe foi dado testemunhar em direto o que sucedeu a seguir, mas este relato é fidedigno, na medida em que foi recolhido, como mandam as regras, junto de mais do que uma fonte. Pois acontece que o comandante, não estando na sua escala de vigia noturna, acabou por não resistir ao muito cansaço e ao ainda maior sono — e adormeceu no improvisado quarto de dormir. Fê‑lo, no entanto, na pior altura: atentíssima, uma onda matreira, que há muito jurara vingar‑se dos feitos atlânticos do mestre Blasques, assim que viu os seus olhos cerrarem‑se na sequência de um longo bocejo, investiu raivosa contra o flanco de estibordo do horrorizado Avanti. Mal comparado, foi como uma valentíssima estalada de mão aberta dada por um discípulo do Adamastor, fazendo estremecer o iate da proa à ré e da base do patilhão ao ponto mais alto do mastro.
Apanhado desprevenido não pela terceira mas pela traiçoeira vaga, o nosso comandante foi projetado do sofá onde gozava do seu período de justo descanso e aterrou sobre a mesa da cabina, em que a tripulação toma muitas das refeições e sobretudo faz as suas opções táticas e estratégicas, após aturado estudo, muita conversa, prolongada discussão, bastante cerveja e uma pitada de rum e vinho do Porto. Com o impacto daquele corpo, a mesa foi literalmente arrancada dos parafusos que a fixavam ao chão e ficou caída ao lado do comandante, estatelado, esfacelado numa perna e ainda sem perceber bem o que se passara.
Como um mal nunca vem só, o marinheiro Afonso, que estava no seu quarto de vigia no exterior, ainda que enjoado dos pés à cabeça, foi o primeiro a cumprir, diligente, o dever de auxiliar o comandante em apuros. Desceu num salto os quatro degraus que separam o poço da cabina, mas quando se baixou para socorrer o seu superior foi assaltado literalmente por um irreprimível vómito, a ponto de só ter tempo e energia para subir as escadas, voltar ao poço de onde saíra e…
Bom, poupa‑se aos leitores uma descrição mais minuciosa e colorida do que aconteceu a seguir. Dir‑se‑á apenas que o habitáculo ficou bastante menos habitável, porque em vez de borda fora, foi borda dentro. De tal forma que, assim que atracámos, por volta das 9 horas da manhã, à marina de Angra do Heroísmo, todos os nossos planos imediatos foram alterados. Primeiro: limpar o convés, cabos, almofadas, roupa, tudo corrido à mangueirada, à vassourada e a detergente da louça. Segundo: contactar a empresa proprietária do veleiro, que logo arranjou uma equipa de dois carpinteiros que tratou de repor a mesa no local de antanho. Terceiro: tomar um bruto pequeno‑almoço, para matar a fome de uma noite tão agitada que inibiu toda a tripulação de jantar o que quer que fosse.
Excerto de "Volta aos Açores em 15 dias", de José Pedro Castanheira, editado pela Tinta-da-China. Fotografia: cortesia Tinta-da-China.
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