Bilhete-postal por Pedro Neves

A agitação que se fazia sentir à entrada de Alcoutim já deixava perceber que não se tratava do habitual domingo de março na pequena vila do Baixo Guadiana. “Acha que posso estacionar aqui?” perguntava uma senhora a outro visitante recém-chegado enquanto apontava, embaraçada, para o seu automóvel em cima do passeio. Os lugares para estacionar pareciam ser poucos para acomodar a quantidade de gente que acorreu a este canto isolado do Algarve num fim-de-semana soalheiro para visitar o Festival do Contrabando.

Alcoutim
A fila de gente para a maior atração do Festival do Contrabando, que decorreu entre 24 e 26 de março créditos: Pedro Neves

Quem lá conseguiu encontrar um lugar para deixar a viatura (havia um parque de estacionamento com serviço de vaivém na zona industrial da vila, mas não estava assinalado à entrada da povoação), tropeçou logo a seguir numa fila de gente já a serpentear a frente ribeirinha da vila. O motivo da espera? A abertura matinal da maior atração do festival, com direito a bilheteira e pulseira própria para acesso livre durante todo o dia.

Frente ribeirinha de Alcoutim
Por estrada, a distância habitual entre as duas localidades é de 70km créditos: Pedro Neves

Durante três dias de março, o festival de artes de rua, criado em 2017, uniu literalmente os dois lados da fronteira, fazendo uso de uma ponte pedonal flutuante. A estrutura permitia atravessar o Guadiana entre duas localidades situadas diretamente à frente uma da outra: Alcoutim, no lado português, e Sanlúcar de Guadiana, no lado espanhol.

Sanlúcar de Guadiana
As balsas que tipicamente ligam as duas margens do rio Guadiana (uma distância à volta dos 230 metros) créditos: Pedro Neves

Com a ponte mais próxima a cerca de 40 quilómetros de distância, as duas vilas fronteiriças continuam ligadas e separadas pelo Guadiana. Ainda assim, atravessar ali o rio é uma viagem de apenas alguns minutos de balsa (para quem gostar da descarga de adrenalina, todavia, a travessia pode ser ainda mais rápida). A ponte flutuante supera, mesmo que provisoriamente, a eterna divisória entre as povoações e permite aos seus habitantes e visitantes caminharem sobre as águas do rio.

Ponte do Festival do Contrabando
A ponte flutuante que liga Alcoutim e Sanlúcar durante o Festival do Contrabando créditos: Pedro Neves

A ponte é formada por milhares de blocos flutuantes de plástico que se encaixam uns aos outros como peças de puzzle e oferecem à estrutura a flexibilidade necessária para se adaptar à corrente do rio. A distância entre as duas margens é relativamente pequena, a rondar os 230 metros.

Polícia Marítima no rio Guadiana
Agentes da Polícia Marítima a vigiarem o rio Guadiana junto à ponte flutuante créditos: Pedro Neves

O primeiro passo é sempre o mais hesitante, mas os blocos conferem-lhe estabilidade e robustez. Como seria de esperar, não é uma estrutura totalmente imóvel, sobretudo nos primeiros minutos após a sua abertura de manhã, quando há um grande número de pessoas à espera para percorrê-la. De resto, a travessia pareceu muito segura e bem organizada. Foi preciso comprar um bilhete de 4€ (válido para o dia inteiro) e há uma corda a separar os visitantes que caminham entre os dois sentidos. A passagem é feita debaixo do olhar vigilante de membros dos bombeiros e forças de segurança instalados nas margens e em embarcações nas águas do rio.

Ponte flutuante do Festival do Contrabando
O primeiro grupo de pessoas nesta manhã a atravessar a ponte flutuante créditos: Pedro Neves

Pouco depois das 10h30, as primeiras pessoas a atravessarem a ponte já formavam uma espécie de cadeia humana sobre o rio Guadiana. A maioria parecia estar a visitar a zona pela primeira vez, curiosa pela ideia de fazer uma travessia que liga ao mesmo tempo duas pequenas localidades e dois países. As fronteiras geográficas são sempre fonte de fascínio. A da ponte entre Alcoutim e Sanlúcar tem a condição especial de ser temporária e quase artesanal na sua escala. Se não tivesse sido inspirada no contrabando que marcou a região durante décadas, podia passar por algo com um simbolismo bíblico. Não por acaso, a sua conceção e enquadramento na paisagem parecem ter mais a dever à arte do que à engenharia.

De Sanlúcar a Alcoutim
A vista no regresso a Alcoutim créditos: Pedro Neves

O ambiente nas duas povoações era festivo, muito à conta do programa preenchido de atividades do festival, que incluía teatro e animação de rua, além de mercados tradicionais e uma série de atuações musicais ao vivo. A vila algarvia é mais pequena (com menos de 3 mil habitantes, é a quarta sede de concelho de Portugal Continental com menos população, de acordo com uma notícia recente do Diário de Notícias), mas parecia, ainda assim, mais cheia. Pouco depois das 11h, a par de outros idiomas, português e espanhol já se faziam ouvir em ambas as margens do Guadiana.