Bilhete-postal por Leandro Myslo

Várias razões me detinham preso a um lugar que não me permitia a ousadia de arriscar ir, alguns medos; uma casa alugada; um trabalho; pouco dinheiro; restrições inerentes à pandemia; entre outras. Além disso, havia também o facto de só ter viajado para fora de Portugal apenas uma vez, há 23 anos atrás, para um fim-de-semana na Disneyland Paris. Desta vez, seria para embarcar sozinho num avião, durante uma viagem de 10 horas, para um lugar a 8 mil quilómetros de casa, onde iria permanecer por três meses na casa de alguém que me aguardava do outro lado, e que eu havia conhecido em Portugal apenas alguns meses antes.

Às vezes, esqueço-me de que tenho uma deficiência motora, de tal forma que me soa até estranho escrever sobre isso, e é nestas alturas que dou de caras com esse facto e que sou obrigado a reflectir sobre até onde pode ir a minha ousadia. Eu só tinha duas opções, ou me mantinha preso por segurança, ou arriscava por liberdade. Escolhi a liberdade e o risco, é claro, por intuição, por amor, e sobretudo para voltar a sentir-me vivo. Há coisas que acontecem no nosso caminho, que são oportunidades preciosas para nos colocarmos em posições onde nunca estivemos, e assim, conhecer um pouco mais sobre nós.

Ao longo desses meses tive oportunidade de visitar as seguintes cidades: São Paulo; Ubatuba; Holambra; Rio de Janeiro; Salvador; Mogi Guaçu; Jacareí; São José dos Campos; São Bento de Sapucaí; Santo António do Pinhal. No entanto, há uma cidade em especial que guardo no meu coração, pouco conhecida pelos europeus mas muito requisitada pelos Brasileiros no inverno. Estou a falar de Campos do Jordão, a cidade mais alta do Brasil, a 1628 metros de altitude na Serra da Mantiqueira.

Campos do Jordão pode orgulhar-se de possuir um dos melhores climas do mundo. Passou de uma cidade sanatório, destinada à cura de tuberculose, para uma das maiores referências do turismo no Brasil. No inverno, a sua época alta, o centro turístico da cidade, Capivari, vira uma autêntica vila de natal com toda a sua iluminação. Devido à presença de pequenas colónias europeias no passado, as construções da cidade têm um estilo semelhante às das regiões montanhosas no norte da Europa. As casas possuem telhados com geometria triangular ou cónica, e exibem madeira ou tijolos no exterior, tudo pensado e adaptado ao clima das montanhas, não é em vão que lhe chamam a “Suíça Brasileira” — o lugar que os Brasileiros escolhem para fugir do calor e experienciar um inverno “europeu”.

Campos do Jordão
A Baixa de Campos do Jordão, com os seus edifícios de estilo suíço créditos: Leandro Myslo

Apesar do frio de rachar que enfrentei enquanto lá vivi, coisa que não imaginaria passar, mesmo tendo sido avisado, o calor com que me acolheram os habitantes de Campos fez com que se tornasse confortável toda a minha estadia na cidade. Fui aquecido pela simpatia dos comerciantes e moradores, pelo amor da minha hospedeira (hoje companheira de vida), pelo vinho quente, pelos pães de queijo, pelas tapiocas, pela sopa de fubá da Valéria, pelo pastelão do Maluf, e pelo pastel do tio Jorge. 

Para aquecer o estomâgo, tive também a sorte de experimentar um dos cafés mais exóticos do mundo, e também mais caros, feitos a partir de grãos de café excretados por uma ave da mata Atlântica chamada Jacu. A sua fisionomia parece o resultado do cruzamento de um pavão com uma galinha, é um animal inteligente que se alimenta dos melhores frutos de café, e uma vez que não mastigam, acabam por reter toda a polpa e eliminar pelas fezes as sementes inteiras, adicionando-lhe um sabor diferenciado por causa da decorrência da acidez e da acção das enzimas presentes no seu organismo.

Como na maior parte das cidades turísticas, nem tudo cabe numa fotografia de postal. Na periferia dos centros turísticos existem outras realidades, e Campos não foge à regra. É na periferia que vivem os trabalhadores do centro e a dicotomia existente na cidade é gritante e a poucos metros de distância. Num lado as casas são estilo “Suíça”, no outro são estilo favelas do Rio; num lado os condutores param na passadeira, no outro é o salve-se quem puder; num lado votam Bolsonaro, no outro votam Lula. 

Por falar em política, esta minha temporada decorreu na altura perfeita para conhecer o Brasil a um outro nível. Presenciei os dois maiores acontecimentos deste país: as eleições presidenciais e o Mundial de futebol. Nas eleições, vi um Brasil incrivelmente polarizado, a população completamente dividida e um fanatismo tal, só visto no futebol — não há muitas diferenças entre as campanhas eleitorais e o Brasileirão. Durante as campanhas, era fácil identificar os apoiantes de Bolsonaro, estes exibiam nos seus veículos pessoais a bandeira nacional, ou vestiam a camisola da selecção de futebol. Foi preciso a chegada da Copa para quebrar por momentos essa divisão, para que todos voltassem a usar a mesma camisa, pois acima de política, futebol no Brasil é religião.

Embora estivesse a viver uma nova experiência e a conhecer outros cantos do mundo, nem todos os dias foram de euforia e entusiasmo. Foi também nesta temporada, logo no primeiro mês, que eu vivi uma catarse muito forte. Estava a hospedado numa casa desconhecida, num país diferente, com alguém que pouco conhecia, longe de tudo o que me era familiar. Havia dias em que me sentia turista, outros dias em que me sentia emigrante, era uma sensação muito estranha, afinal de contas nem sempre estive a passear — muitas foram as manhãs que passei sozinho em casa a ver a chuva cair. 

A casa onde vivi ficava no cimo da serra, e a única forma de sair para a cidade era através de um autocarro cuja paragem se fazia distante e por um caminho tortuoso para alguém com a minha condição. Tantas foram as vezes que eu desejei ter comigo o meu carro que tanta independência me promove. Estar dependente de alguém foi uma experiência que mexeu muito comigo, e para piorar, eu tinha deixado Portugal numa fase muito conturbada da minha vida. Todo este conjunto de factores levantou muitas questões e fez-me esbarrar em algumas sombras — que sorte que tive nesses momentos, ao ouvir a companhia dos pássaros na varanda, enquanto contemplava a melhor paisagem que alguma vez tive na frente dos meus olhos.

A beleza da serra da Mantiqueira, um dos maiores patrimónios naturais do Brasil, tem mais de 500 quilómetros de extensão que atravessam três estados (São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro). Na parte que podemos observar de Campos de Jordão, está uma abundante Mata de Araucárias. A árvore que dá nome a esta mata, também conhecida por Pinheiro-do-paraná, possui uma beleza sem igual. O seu tronco rectilíneo pode chegar a 50 metros de altura, e a sua copa vai mudando com o crescimento, começando em forma de cone e acabando em forma de taça — na idade adulta parece um autêntico candelabro. As árvores fêmeas dão origem a pinhas com o tamanho da minha cabeça, carregam lá dentro uns pinhões com o tamanho do meu polegar, altamente nutritivos. Demoram entre 20 a 40 anos para se reproduzirem e podem viver muito mais de quatro séculos. 

Já parece claro que fiquei apaixonado pelo encanto desta árvore, e como não poderia trazer nenhuma debaixo de braço, decidi tatuar uma em cima dele, eternizando assim esta minha jornada — a imagem da araucária será sempre o portal de regresso a Campos do Jordão.

Tatuagem de uma araucária
O braço do Leandro com a tatuagem de uma araucária créditos: Leandro Myslo

O Leandro é artista, vive em Lisboa e escreve no seu blog Epifania dos Vinte e Oito, onde este artigo foi originalmente publicado.