Duas ideias chave marcam a ação da Fartura Comidas do Brasil: a gastronomia não é só restaurantes e chefs e por detrás de cada prato há sempre uma história.
A valorização da gastronomia é o objetivo da Fartura e para isso considera imprescindível o conhecimento de toda a cadeia produtiva e em particular dos produtores.
"Num prato a matéria prima contribui com 50 ou 60% para o sucesso", esta é a tese de Rodrigo Ferraz que se apercebeu da importância da relação entre ingredientes, produtores, receitas, chefs e restaurantes no decorrer de uma das 20 edições do Festival de Tiradentes, em Minas Gerais, Brasil – "como é uma cidade pequena, com cerca de sete mil habitantes e com um património histórico fenomenal, deu para ver uma cadeia alimentar com tudo certinho: uma região com o seu produto, o produtor, um mercadinho e o restaurante".
Em 2009, decidiram avançar com o levantamento gastronómico e o plano arrancou em 2010. Fizeram uma recolha em todos os estados brasileiros. A Expedição Fartura percorreu 208 municípios e mais de 100 mil quilómetros.
O primeiro teste da informação recolhida foi no Festival de Tiradentes. Rodrigo Ferraz afirma que o sucesso teve a ver com o facto de "o público abraçar a ideia porque estava a ser mostrado um Brasil desconhecido".
O material recolhido foi editado em livros, vídeos e online e constitui um acervo determinante das várias cadeias produtivas da gastronomia em cada estado brasileiro. São reveladas histórias de pessoas, produtores que preservam modos de produção artesanais e a qualidade de muitos produtos, ingredientes desconhecidos, mercados locais, mercearias e receitas originais que combinam na gastronomia as origens de Portugal, África e indígena.
Estas ideias foram elogiadas e receberam prémios internacionais, "deram credibilidade ao projeto e revelaram o valor económico e cultural da gastronomia brasileira".
O conhecimento e a divulgação destes intervenientes na “fartura” gastronómica do Brasil foram também um forte impulso para muitos produtores e permitiram o desenvolvimento económico e sustentado de projetos familiares. Por exemplo, uma mercearia centenária, que fica a 70km de Belo Horizonte, ainda utiliza caderneta para pagamento faseado e tem cerca de 1200 produtos diferentes, quase que triplicou o seu movimento após ser dada a conhecer pela Expedição Fartura.
A segunda fase do projeto de recolha de informação está a ser liderada pela jornalista Luíza Fecarotta e o levantamento é feito de forma menos exaustiva e mais profunda. Ela conta que andou quase dois meses a fazer o levantamento em Minas Gerais. Muitas vezes a pesquisa começa em lojas e mercados onde descobrem os produtos e vão depois ao encontro do produtor.
É neste contacto direto, em lugares remotos, que percebem a qualidade e a singularidade de alguns produtos e recolhem histórias que revelam o profundo valor cultural da gastronomia. A valorização económica é o passo seguinte porque na quase totalidade dos casos são estruturas muito pequenas. Frequentemente, são pequenas unidades de cariz familiar. E aqui começa outra história: a do Festival Fartura.
São eventos gastronómicos que se realizam há vários anos em seis cidades e um dos objetivos é dar visibilidade a estes produtores. Colocá-los em contacto com chefs e outros elementos do ciclo da gastronomia e também com o público. Os contactos e a visibilidade permitem-lhes fazer parte de uma rede que lhes propicia oportunidades de desenvolvimento da produção.
Em todos os festivais há uma área reservada para os produtores. Na edição deste ano de Belo Horizonte estavam, por exemplo, um casal de Minas Gerais que abandonou a produção de café após a queda significativa dos preços e começou a produzir frutos vermelhos. Vendiam sumos de fruta e ficaram populares devido a uma excelente e refrescante sobremesa: uma taça de frutos vermelhos gelados com cobertura de doce de leite.
Ana doce de mel
Ana Mantegari de Castro Abreu é uma jovem de 21 anos que descobriu a receita de doce de leite de mel num caderno da bisavó de 1937.
Este foi o ponto de partida para mudar de vida. Deixou o bailado em formação na Alemanha e trocou-o pela gastronomia brasileira. Começou a estudar gastronomia, recolheu mais informação nos cadernos da bisavó e testemunhos de pessoas que ainda tiveram o prazer de saborear o doce original e foi apurando a receita.
O resultado? "Você coloca uma colher de doce na boca e é uma explosão de sabores".
Agora está a iniciar o processo de produção que é muito demorado. Leva cerca de cinco horas e o mel de acácias da fazenda é muito raro no Brasil.
Ana quer manter a produção artesanal e fez a sua estreia no Fartura de Belo Horizonte para dar a conhecer a receita da bisavó. Ana foi descoberta pela Luíza Fecarotta, que "ficou encantada" com o doce e já tem marca: Mantega’s.
O caminho natural é Portugal
O Fartura Comidas do Brasil pretende agora alargar o seu âmbito de ação e um dos desejos é descobrir uma das origens da gastronomia brasileira. O caminho é Portugal e a primeira iniciativa teve lugar em Setembro deste ano e contou com a presença de chefs brasileiros que promoveram um intercâmbio com portugueses.
Segundo Rodrigo Ferraz a ideia é em 2018 "fazer algo maior". "Nós estamos a pensar fazer em Portugal um mapeamento de Portugal", tal como fizeram no Brasil. O projeto deverá arrancar em Abril/Maio, com uma equipa de sete a dez pessoas e "a ideia será mostrar os pontos de conexão da gastronomia portuguesa com o Brasil".
Um dos exemplos é "mostrar a história da galinha de cabidela e compará-la com a do frango de molho pardo brasileiro". Rodrigo Ferraz salienta que a gastronomia portuguesa tem tido um forte impulso na sua projeção e os próprios brasileiros "estão a descobrir que a gastronomia portuguesa não é só bacalhau".
Fartura em Belo Horizonte 2017
O Festival Fartura em Belo Horizonte teve a quarta edição e rapidamente atingiu a lotação máxima de quatro mil pessoas.
É um recinto fechado, próximo da sala de concertos de Belo Horizonte e nos dois dias do evento revelou-se um espaço descontraído, com muita música e gastronomia.
Chefs de vários estados vêm aqui mostrar os seus pratos e há também gastronomia tradicional mas confeccionada de forma criativa.
Um dos muitos exemplos é a Canjiquinha à oriental do Chef Pablo Oazen: canjiquinha no caldo galopé e missô, barriga de porco defumada, ovo ajitama, couve, alho e cebolinha.
Há ainda cozinha ao vivo e acções de formação com os chefs a revelarem alguns segredos da culinária ou como tirar partido de alguns produtos.
Parte significativa dos visitantes são de classe média, média/alta e passam longas horas a confraternizar. Um copo de vinho e um petisco…
O ingresso é pago em dinheiro ou com quatro quilos de alimentos que foram entregues a organizações de apoio social.
O Fartura tem parcerias com alguns dos maiores órgãos de comunicação social brasileiros e muitas iniciativas contam com o apoio do Estado de Minas Gerais que aposta na gastronomia como instrumento de promoção económica e social.
A viagem foi a convite da SETUR e do Festival Fartura.
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