Quando em 2015 iniciei a minha viagem em busca da doçaria que se faz pelo país, fiquei muito entusiasmada ao imaginar aquilo que iria encontrar. Doces com muitos séculos de história, outros criados recentemente por mãos habilidosas, enfim, de tudo um pouco. Já tinha uma boa noção de tudo isto antes de me fazer ao caminho.

Contudo, as minhas expectativas foram bastante superadas e tive grandes surpresas. Encontrei doçaria como não esperava encontrar e descobri histórias de doces muitíssimo interessantes. Na colecção de livros que tenho vindo a publicar desde há dois anos, A Doçaria Portuguesa, incluo todos os doces de Portugal e escrevo a história de todos eles. Para si que está a ler este texto, seleccionei alguns doces que me surpreenderam, mas apenas alguns de entre muitos que foram para mim inesperados, fora do comum e que me levaram a abrir a boca de espanto e de gulodice.

Um facto que me surpreendeu, ou se calhar nem tanto, foi constatar que a produção de doces ainda é uma actividade quase exclusivamente feminina. Digo “ainda é” porque essa realidade é muito antiga, tanto que encontramos um artigo das Ordenações Manuelinas a remeter para as mulheres a exclusividade da produção e venda de doces (alféloas) em Portugal. No nosso imaginário comum, a ideia confirma-se: mães, avós, irmãs, tias, são quase sempre elas que fazem, ensinam e garantem que as tradições culinárias se mantenham. São também elas que acrescentam, criam e inovam receitas, transformando muitas vezes, à medida das possibilidades, aquilo que antigamente se fazia. Por um lado, as mulheres formam uma corrente contínua com o passado; por outro lado, as suas mãos vão moldando o presente e o futuro.

Esta realidade é importante para compreendermos algumas transformações, mas também para explicarmos a continuidade de alguns aspectos da doçaria portuguesa.

Alcomonias

Grândola e Santiago do Cacém

Olhemos para um doce muito interessante que hoje é feito entre os concelhos de Grândola e de Santiago do Cacém. Chama-se alcomonia e tem como ingredientes principais pinhão, farinha e açúcar. O nome soa de imediato a árabe e, efectivamente, vários elementos indicam essa origem. Desde logo, tem um formato em losango, coisa invulgar em doces, mas é um formato que surge em doces árabes e orientais. Outro indicador está no significado do nome, que vem de “cominhos”. Seria um doce feito com cominhos e erva-doce, que passou a utilizar pinhão com as deslocações da receita para regiões onde esse produto abundava. Sabemos que, conforme a acessibilidade dos ingredientes, as receitas vão mudando. Daí que as actuais alcomonias de Grândola e Santiago do Cacém estejam já em novo processo de mudança: o pinhão tornou-se caro e obrigou ao aumento da proporção de farinha. Se assim continuar, o pinhão será substituído por completo.

Alcomonia
Alcomonia Alcomonias créditos: Gonçalo Barriga

Bolo do tacho

Serra de Monchique

Mais para sul, na Serra de Monchique, a tradição do dia 1 de Maio inclui o chamado bolo do tacho, doce paradigmático da evolução que acontece nas receitas ao longo do tempo, de acordo com a acessibilidade dos ingredientes. Cada pessoa faz à sua maneira, e de cada vez que é feito não sai igual. Os ingredientes possíveis que hoje em dia vão sendo acrescentados à mistura são farinha, ovos, azeite, banha, aguardente, mel, canela, chocolate, café, erva-doce, etc. Noutros tempos seria feito com muito menos variedade. À medida que as pessoas em geral foram tendo acesso facilitado a diversos produtos, foram-nos acrescentando ao bolo. A mistura vai num tacho ao forno e resulta num bolo meio enqueijado, uma delícia. Na madrugada do dia 1 de Maio, o bolo do tacho feito de véspera acompanha os populares de Monchique na tradição de “atacar o Maio”, ou seja, o diabo, o que implica uma grande algazarra de madrugada, saída para a rua e piqueniques na serra. É uma manifestação de alegria para espantar tudo o que é negativo, e o bolo do tacho é central nas celebrações.

Bolo do tacho
Bolo do tacho Bolo do tacho créditos: Gonçalo Barriga

Farinha torrada

Sesimbra

Podemos hoje encontrar em Sesimbra, em várias pastelarias, um doce cuja receita se desenvolveu de maneira muito semelhante, a farinha torrada. Levada por pescadores para o mar, era uma mistura pobre, com um pouco daquilo que houvesse, e agora come-se em porções quadradas com chocolate, canela, limão, ovos, açúcar e a farinha. A regra é esta: quando vemos chocolate num doce, já sabemos que é uma introdução recente.

Farinha torrada
Farinha torrada Farinha torrada créditos: Gonçalo Barriga

À boleia da bolota

Alentejo

Considerando ingredientes acessíveis, a bolota no Alentejo chegou a ser dos poucos produtos que matavam a fome. O consumo era generalizado, mas mal visto, porque era supostamente alimento para os animais. Hoje é um produto bem cotado, com aplicações na culinária elaborada e até na cosmética. Mas os alentejanos sempre a conheceram e usavam-na de diversas maneiras na cozinha. Assim, a doçaria com bolota que a doceira Isilda Ameixa, de Estremoz, e o pasteleiro Rui Coelho, do Alandroal, têm vindo a apresentar nos seus estabelecimentos é, e não é, uma novidade. É uma novidade no sentido em que são criações suas: tortas, pastéis, bolachas e broinhas, aplicando bolotas em farinha, em puré, em creme, granuladas, aos pedaços, etc. Mas não é uma novidade no sentido em que são sabores que os alentejanos conhecem e que todos os portugueses deviam conhecer como conhecem a castanha, por exemplo.

Pastel de Bolota
Pastel de Bolota Pastel de bolota créditos: Gonçalo Barriga

Manjar-branco e manjar das Chagas

Coimbra e Vila Viçosa

Aliás, acontece com frequência acharmos que são exóticas e inovadoras certas coisas que já têm barbas. O manjar-branco e o manjar das Chagas são exemplos disso. O primeiro leva carne de galinha e o segundo carne de coelho, ambas esfareladas. Para muitas pessoas, é surpreendente ouvir falar de doces com carne. Mas estes dois doces têm séculos na doçaria conventual e fazem-se desde a Idade Média pela Europa fora. Actualmente, faz-se em Coimbra, o primeiro, e em Vila Viçosa, o segundo.

A propósito, estes dois doces, tal como muitos outros, fogem ao estereótipo de doces conventuais que a maioria das pessoas tem no seu imaginário, de modo que os dois manjares as surpreendem também por isso. A doçaria conventual também é isto? Pois é.

Manjar das Chagas
Manjar das Chagas Manjar das Chagas créditos: Gonçalo Barriga

Bucho e chouriça doce

Monção e Melgaço

Na doçaria popular, há também casos de doces com ingredientes de origem animal pouco habituais nos dias que correm. O bucho doce, que encontramos na região de Monção e Melgaço, é um preparado de pedaços de pão, ovos, canela e açúcar, tradicionalmente cozinhado dentro de um estômago de porco. Agora, quase ninguém tem o trabalho de fazer com o bucho, utilizando-se em vez disso um pano de linho dentro do qual a mistura vai a cozer. Mas era assim até há bem pouco tempo. Continua a haver, no entanto, uma grande variedade nos ingredientes, na mesma linha de doces como a farinha torrada e o bolo do tacho.

Bucho doce
Bucho doce Bucho doce créditos: Gonçalo Barriga

Outro exemplo é a chouriça doce existente em Alfândega da Fé. Faz-se à semelhança de um chouriço normal, misturando sangue de porco com pão, mel, açúcar, amêndoa, azeite e canela. Como se vê, o universo da doçaria portuguesa, conventual e popular, inclui estas especialidades que fazem parte da nossa história e do nosso presente, por isso não estranhe e inclua-as na sua dieta, tal como inclui o bacalhau e o cozido à portuguesa.

Queijada de urtiga e lancha poveira

Fornos de Algodres e Póvoa de Varzim

No mesmo sentido, não deverá estranhar se por acaso estiver em Fornos de Algodres ou em Póvoa de Varzim e lhe puserem um doce verde à mesa. No caso do primeiro, terá à sua frente a queijada de urtiga, no caso do segundo, a lancha poveira, que contém nabiças. Ambos são criações recentes e inventivas. Mas a urtiga é comestível? Claro que sim. Depois de lavada e cozinhada, fica como espinafres ou outra planta do género. Serve para múltiplas aplicações culinárias. Da mesma forma, a nabiça pode servir de ingrediente para a doçaria, desde que haja vontade e arte. Felizmente, vamos tendo essas duas coisas em Portugal.

Queijada de urtiga
Queijada de urtiga Queijada de urtiga créditos: Gonçalo Barriga

Ferramentas de São Gonçalo

Amarante

Podia continuar a apresentar doces sem fim que surpreendem por várias razões, como por exemplo pelas tradições associadas, pela história da sua origem ou do seu nome, ou por outro factor desconhecido pela maioria das pessoas. Deixo só mais dois casos que me maravilharam por outra razão, a aparência visual.

Ferramentas de São Gonçalo
Ferramentas de São Gonçalo Ferramentas de São Gonçalo créditos: Gonçalo Barriga

As ferramentas de São Gonçalo são feitas em Amarante sobretudo em Janeiro e em Junho, aquando das celebrações do santo homónimo, embora todo o ano se encontrem à venda. Não há que enganar: olha-se para o doce e percebe-se logo o que representa, um falo. Isto tem a ver com o facto de São Gonçalo ser um santo casamenteiro e a forma fálica é uma expressão antiquíssima da união amorosa. Pela estética, mistura-se sagrado e profano, num doce que, visualmente, nos obriga a sorrir.

Amêndoas cobertas

Torre de Moncorvo

Num plano muito diferente, fiquei deslumbrada com a estética do principal doce de Torre de Moncorvo. Este é daqueles casos que merecia muito mais atenção e muito mais procura. Chama-se amêndoa coberta e parece-se com pequenos corais delicados. Os ingredientes até são simples (amêndoa e calda de açúcar), mas o trabalho de produção e o resultado final são extraordinários. Na Primavera, ouve-se pelas ruas da vila as cobrideiras a darem voltas e mais voltas às amêndoas, com dedais nas pontas dos dedos, e só dali a vários dias é que teremos os elegantes corais brancos prontos em saquinhos.

Amêndoas cobertas
Amêndoas cobertas Amêndoas cobertas créditos: Gonçalo Barriga

Por esta pequena amostra de doces que seleccionei, espero que lhe tenha aguçado o apetite e a curiosidade por muito mais. Como se vê, a doçaria portuguesa é muito mais do que o pastel de nata (não desfazendo de maneira nenhuma). Pegue nesta ideia e redescubra a doçaria portuguesa que julgava conhecer.

Sobre a autora

Cristina Castro é uma ávida apreciadora de boa gastronomia e de leituras gastronómicas. Escreve e produz vídeos sobre a doçaria portuguesa para o Público. Criou e dirige o projecto No Ponto para a investigação, o registo e a promoção dos doces do país. Tem vindo a publicar a colecção A Doçaria Portuguesa, os mais completos livros sobre a história e actualidade dos doces de Portugal.

Artigo originalmente publicado no blogue Amass. Cook