Por: Autores: Maria Sena & Bruno Carvalho (Amass. Cook.)

É facto, comer bem está na moda. Por isso, nada melhor do que olharmos para a nossa história e vermos algumas das publicações que definiram a história da cozinha portuguesa. Descubra esta selecção de seis obras que percorre mais de 500 anos da história da nossa gastronomia.

Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal (Séc. XV)

Começamos com um documento incontornável: o mais antigo manuscrito de receitas portuguesas. Tudo começou no final do séc. XVI, quando a infanta D. Maria contraiu matrimónio com um nobre italiano, e se mudou para Nápoles. Adivinhando saudades da culinária lusa, levou consigo um conjunto de manuscritos antigos que permitiam a reprodução daquelas que deveriam ser as suas receitas favoritas.

Infanta D. Maria
Infanta D. Maria

Este manuscrito contém um total de 67 receitas que se dividem em quatro secções: manjares de carne, manjares de leite, manjares de ovos e conservas. Nele constam receitas curiosas, como a demorada compota de talos de alface, que necessitava de 15 dias de confecção até estar pronta. Integram-se também receitas de pastéis salgados (por exemplo, de carne, tutano, pombinhos ou fígado de cabrito), e as que combinam o doce com a carne, tais como a tigelada de perdiz ou o ainda praticado manjar branco, que junta carne de galinha a farinha de arroz e açúcar.

De todos os tesouros que este livro guarda, falta ainda revelar talvez o mais sonante de todos. Não fosse ele a receita mais antiga que se conhece dos muito desejados pastéis de nata, aqui baptizados como pastéis de leite. Mais ainda, este livro é um fóssil vivo onde se encontra muita informação sobre os hábitos culinários portugueses da época. Salienta-se a “confusão e mistura de sabores” que acontecia pela mistura em excesso de condimentos (os ditos adubos), açúcar e acidez resultando num desfecho agridoce (o que nem sequer me parece mal), claramente um reflexo da abundância das especiarias do império português. Sabe-se também que à data o dia tinha duas refeições principais, o jantar e a ceia. O primeiro ocorria ao fim da manhã, e o segundo ao final da tarde.

A parte mais infeliz da história desta preciosidade foi o desconhecimento na sua existência durante largos séculos. O manuscrito original e único encontra-se na Biblioteca de Nacional Nápoles e foi descrito primeira vez em 1895, tendo ainda sido necessário esperar até ao final da década de 1960 para que fosse editado em Portugal.

Arte de Cozinha — Domingos Rodrigues (1680)

A “Arte de Cozinha” de Domingos Rodrigues (1680), foi o primeiro livro de culinária a ser editado e distribuído em Portugal. E por isso não o confundamos com o Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, que funcionou quase como um documento pessoal de uma princesa longe de casa, não tendo contribuído de uma forma activa para a culinária da época. Já Domingos Rodrigues conseguiu através da sua obra relatar e influenciar a gastronomia portuguesa até meados do século seguinte.

O que mais se sabe sobre o autor? Foi um notável cozinheiro natural do Bispado de Lamego, que desenvolveu o seu trabalho em diferentes casas da aristocracia do norte de Portugal, até se ter tornado Mestre da Casa Real. O receituário do seu livro caracteriza-se pela preferência do uso de carnes, particularmente a caça, o toucinho, e as vísceras, enquanto o uso de vegetais permanece discreto. Já o uso de especiarias como a pimenta e o açafrão é abundante, ainda reflexo das importações do império. A propósito, é também neste livro que se faz uma das primeiras referências ao chocolate, feito a partir da mistura de cacau com canela e baunilha, destinando-se ao uso em bolos.

Arte de Cozinha
Arte de Cozinha

Através das receitas vê-se que a combinação de proteína animal com açúcar ainda era muito popular, como é o caso do frango doce cozido e mergulhado em calda de açúcar, para depois ser servido em pão e polvilhado com canela. Ou também a perdiz doce, que depois de mergulhada em calda de açúcar era servida num espeto, polvilhada com canela e açúcar. Outras receitas tinham técnicas curiosas, tal como o peru estilado, que requeria que a ave fosse cozida com uma moeda de ouro portuguesa no seu interior. E o bacalhau? Pode parecer incompreensível, mas nele não constam receitas de bacalhau, o que nos demonstra que à época este peixe não era apetecível às classes mais abastadas.

Arte de Cosinha — João da Matta (1876)

Foi em meados do século XIX que viveu e brilhou um dos cozinheiros mais notáveis de que há memória em Portugal: João da Matta. Filho de um cozinheiro afamado, foi com a morte precoce do pai que o seu percurso se precipitou de forma dramática. Subiu a pulso no meio da restauração, tendo criado algumas das receitas mais marcantes da nossa culinária. Atingiu o auge ao fundar o Grande Hotel du Matta e o Hotel João da Matta, onde serviu algumas das figuras mais proeminentes da época, e era regularmente requisitado para elaborar banquetes reais.

Em 1876 redige “Arte de Cosinha”, um livro destinado aos profissionais da cozinha. Ao rever as receitas observa-se uma forte influência da cozinha francesa, que se demonstra pelas técnicas e apresentação, mas também pela nomenclatura dos pratos, o abundante uso da manteiga e o abandono por completo da combinação de carne com açúcar. O receituário é impressionante, elaborado, harmonioso, e de um teor técnico incrível. João da Matta atingiu um à época o estatuto de super-estrela, e trocava impressões com figuras marcantes da cultura e culinária portuguesa, como por exemplo o Abade de Priscos, criador do inigualável pudim homónimo. Dedicou ao amigo e poeta Bulhão Pato a incontornável receita de amêijoas que hoje todos conhecemos e adoramos. No seu livro constam também umas das primeiras receitas (publicadas) de bolinhos ou pastéis de bacalhau.

O Livro de Pantagruel — Bertha Rosa-Limpo (1945)

Eis que chegamos à nossa epopeia culinária. Enquanto os Estados Unidos têm o Joy of Cooking, o Reino Unido tem o Mrs Beeton's Cookery Book, nós temos O Livro de Pantagruel. É sem dúvida um dos livros de culinária mais conhecidos e bem-sucedidos em Portugal. Quem o diz são os números: actualmente já ultrapassou as 75 edições e reúne agora mais de 5.000 receitas.

A história deste livro começou numa época em que não se esperava mais das mulheres do que tomassem conta da casa e dos filhos, mas Bertha Rosa-Limpo, a autora, não se resignou a esse destino. Tendo celebrado matrimónio aos 15 anos, numa altura em que ainda estava às aranhas cozinha, acabou por enveredar por uma carreira de canto lírico, tendo por isso viajado e descoberto muita da gastronomia europeia.

O Livro de Pantagruel
O Livro de Pantagruel

À medida que foi mergulhando no mundo da culinária, compilou umas impressionantes 3.000 receitas que compunham a primeira edição. Nelas podemos descobrir o receituário completo de Portugal, mas também do resto do mundo. A autora tinha uma especial admiração pela cozinha italiana, tendo-lhe dado especial destaque n’O Livro do Pantagruel, algo que acabou por impulsionar uma onda nacional de interesse por esta cozinha. Mesmo tendo o livro sido lançado no período de pós-guerra (1945), Bertha arriscou e não se poupou no uso de ingredientes e técnicas que não estavam ao alcance de todos, afirmando-se em parte como um livro para as elites. Hoje, é um livro querido para gerações de portugueses, sendo uma memória viva das prateleiras das cozinhas das nossas avós.

Cozinha Tradicional Portuguesa — Maria de Lourdes Modesto (1982)

Em 1957 começaram as primeiras emissões regulares de televisão em Portugal. No ano seguinte, Maria de Lourdes Modesto inicia o seu pioneiro programa de cozinha ao vivo chamado “Culinária”. Atente-se que o maior sucesso televisivo mundial de cozinha ao vivo, The French Chef de Julia Child, apenas estreou em 1963. Foi durante os 12 anos de rodagem do programa televisivo que Maria de Lourdes Modesto que começou a cozinhar a ambiciosa ideia de montar um livro que reunisse o mais autêntico e completo receituário tradicional português.

Cozinha Tradicional Portuguesa
Cozinha Tradicional Portuguesa

Sabendo de antemão que se tratava de uma tarefa árdua que dificilmente a conseguiria completar sozinha, apelou a que todos aqueles que dispusessem de receitas tradicionais de determinada região as enviassem por correio. Foi assim que após 20 anos de pesquisa e recolhas, nasceu em 1982 aquele que considero ser o livro de culinária mais indispensável para qualquer casa portuguesa. Nele encontramos um total de 800 receitas que versam sopas, enchidos, bacalhau, açordas, carne, miudezas e os doces mais típicos de norte a sul cobrindo o Douro, o Minho, passando pelas Beiras, Alentejo, Algarve e ilhas. É um livro que consulto semanalmente, e onde continuo a descobrir novidades. Fica a nota de que é até hoje o livro de culinária com mais sucesso em Portugal, tendo vendido mais de 400 mil exemplares.

Colecção “Coração, Cabeça e Estômago” — Alfredo Saramago (2001-2004)

Alfredo Saramago era natural do Alentejo, tendo por isso nutrindo pela cozinha da região o maior dos afectos, dedicando-lhe várias obras. Fez-se detentor de um percurso académico e literário invejável, e até único em Portugal. Doutorou-se em antropologia em Inglaterra, e publicou inúmeras obras onde reuniu um dos levantamentos mais completos do receituário e saberes tradicionais portugueses. Mas não só: foi também um viajante e profundo conhecedor das grandes cozinhas europeias. Via na alimentação uma forma de comunicação com traços identitários, e como tal uma disciplina central da história. Não encontrava qualquer pecado na gula.

Na sua colecção de livros "Coração, Cabeça e Estômago" fez a recolha de receitas e outros hábitos viajando e contactando com a sabedoria popular e a tradição oral. Publicou ao longo de vários volumes o receituário e outras memórias da cozinha do Alentejo, Algarve, Lisboa, Trás-os-Montes, Minho e Beiras. Estes livros, sempre acompanhados de belíssimas fotografias, revelam a história culinária de um determinado local, indo muito para além dos pratos que caracterizam a região, e mergulhando mais a fundo nas suas raízes gastronómicas. Atribuía também o devido valor aos ingredientes chave de cada região, fossem eles os cereais, os frutos ou o gado, e também às indústrias rurais que prosperaram. As receitas são preciosas até na sua pureza sui generis: são relatadas de forma empírica, sem referir as temperaturas ou os tempos de cozedura.

Cozinha Transmontana
Cozinha Transmontana

Há claro, muitos mais livros que marcaram a história culinária nacional, ou não esqueçamos as obras escritas por Lucas Rigaud, Paul Plantier e Olleboma, por exemplo. Felizmente, a maioria das obras mencionadas encontram-se hoje reeditadas e disponíveis em livrarias e bibliotecas, por isso não deixe de as procurar. Deixamos a pergunta ao leitor: quais são os livros de cozinha que mais o(a) marcaram?

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