Com uma tão extensa passagem pelo Centro, restavam-nos duas noites para percorrer as ilustres paisagens topo do país, contudo, pela força da intempérie, decidimos encurtar a derradeira etapa, porque a vontade contaria quase nada.

Deixámos Viseu que mal espreitámos - bendita foi a chuva no nosso lombo, Jesus, agora e na hora da chegada a Lamego, também. Lá, aproveitámos para dar uma vista de olhos ao Santuário da Nossa Senhora dos Remédios, que foi, seguramente, o monumento mais espetacular que tivemos a oportunidade de visitar. A escurecer, era hora de cruzar a Régua e de vivenciar o fugaz privilégio de admirar as encostas cobertas de vinha, sendo tudo muito rápido, valeu a paisagem que, em todo o globo, não tem par.

Santuário da Nossa Senhora dos Remédios
Santuário da Nossa Senhora dos Remédios Santuário da Nossa Senhora dos Remédios créditos: Casa em Todo o Lado

Pela altura em que chegámos a Vila Real, apertavam a hora e o coletivo de estômagos que se manifestavam em decibéis que deixariam qualquer sindicato orgulhoso. Como não suspeitávamos, sequer, do melhor sítio onde comer, a fome e o desconhecimento levaram-nos ao centro da cidade. Mal pusemos o pé fora do carro, abordámos a primeira alma, que seguia debaixo de um guarda-chuva, pedindo que nos encaminhasse até um razoável local de repasto. Seu dito, nosso feito, e ainda o trouxemos connosco para a refeição.

Mais lúcidos depois do bacalhau e da vitela, ainda estávamos sem pouso e com uma tarefa complicadíssima pela frente, já que a chuva não dava tréguas e, por isso, a humanidade fugia das ruas. Estreámos o desfile de “nãos” no preciso sítio onde jantámos, seguimos ao relento interrogando quem ainda teimava em desafiar o dilúvio, e a inclinação negativa na resposta persistiu. Uma casa de chá representou o último esforço, e um decidido não atirou os nossos fémures para a temperatura controlada da pasteurização. Hesitantes sobre onde ficar, escolhemos uma ruela com uma luz intermitente, para estacionar o carro. Durante a noite percebemos que, em novembro em Vila Real, os iogurtes podem ser guardados na rua.

Parque do Corgo
Parque do Corgo Parque do Corgo créditos: Casa em Todo o Lado

Despertámos gelados, para uma manhã gelada e inaugurámos a nossa exploração no Parque do Corgo e, cortando-o, atravessámos o centro que nos foi permitindo descobrir os recantos charmosos que Vila Real, realmente, tem.

De tarde, arrancámos para a etapa mais ansiada por todos, como era a da chegada a Chaves. Pelo caminho, aproveitámos para passear no Parque Natural de Pedras Salgadas que nos encheu as vistas pelo primor da sua conservação, pelas famosas casas na árvore do arquiteto Luís de Andrade e, claro, pela fonte da nossa água gaseificada que é sempre um motivo de admiração. Posto isto, a nossa meta.

Pedras Salgadas
Pedras Salgadas Pedras Salgadas créditos: Casa em Todo o Lado

Uma trégua momentânea da chuva, uns raios de sol que rompiam sobre o fim da avenida que se esgotava com a rotunda onde se encontrava o tão almejado marco do quilómetro zero, conferiram à nossa chegada uma aura apoteótica.

Antes do registo da despedida, bebemos um café que acreditámos ter sido de reflexão, afinal aquele ápice resumia duas semanas de viagem, pelo que foi no escorregar da cafeína que a ideia de finalização assentou.

Superequipados, com skate e tudo, caminhámos até à rotunda para perpetuarmos data, e foi lá que entre piruetas e macacadas - e uma cadela que decidiu juntar-se à festa -, que fechámos a história mais intensa que alguma vez vivemos.

O conjunto dos dias revelou uma boa experiência, e esta será uma viagem que nunca esqueceremos. A hospitalidade dos portugueses revelou-se incrivelmente enternecedora, desmedidamente prestável e a melhor das histórias para contar.

Todavia, nem tudo foi fácil, foram centenas de quilómetros feitos sem casa, dezenas de conversas com um não no fim, a cabeça que não parava para que se procurasse o melhor conteúdo, a fome que apertava muito mais cedo do que em casa e a regularidade de uma noite bem passada que variava consoante os sítios onde íamos ficando.

Talvez seja por este agridoce emocional que a viagem tenha sido tão desafiante. Guardá-la-emos naquele sítio onde moram as memórias cativas, naquele em que, de impregnadas e imperecíveis, as lembranças não se esfumam e, por outro lado, permanecem indeléveis até que findemos.

Texto: Casa em Todo o Lado

Esta foi a última crónica desta aventura publicada no SAPO Viagens.