No Centro, o primeiro destino de dormida foi Abrantes. Por intermédio da Sara, acabámos por rumar à cidade já com alojamento e refeição garantidos, como resultado do convite que nos havia feito quando ainda estávamos no Algarve.

Foi mesmo à hora de jantar que desembarcámos no sítio em que as coordenadas nos levavam. Da rua via-se um restaurante de fachada modesta, mas com uma montra recheada de consagrações no que à gastronomia diz respeito - como assim, Guia Michelin? A apreensão foi geral e instantânea, pois não percebíamos se a nossa sorte acabava de tomar proporções estratosféricas, ou se, simplesmente, estaríamos prestes a irromper pelo estabelecimento errado, dizendo que nos esperavam. A medo, fomos entrando.

Dentro, o sr. Alberto recebeu-nos com um eloquente humor e nós tranquilizámo-nos por não haver engano. O nosso anfitrião, pai da Sara, recebeu-nos com a exemplaridade do gesto hospitaleiro, nele coube a cidade toda.

Após o requinte de um jantar típico português, seguimos em direção ao 4u, o alojamento local em que estavam os nossos aposentos, que por sua vez não poderiam ser melhores: conforto para todos, café para ainda podermos trabalhar e uma grande vista da varanda, no centro da cidade. Mesmo de noite, Abrantes já era maravilhosa.

Amanhecer em Abrantes
Amanhecer em Abrantes Amanhecer em Abrantes créditos: Casa em Todo o Lado

O dia seguinte impôs que nos organizássemos pela quantidade do queríamos fazer: de manhã desbravámos as ruas magníficas da nossa primeira paragem, de tarde partimos para Pedrógão. Pelo meio, ainda houve tempo para visitar Picoto da Milriça, que marca o centro geodésico de Portugal e que nos prendeu, inesperadamente, no tempo.

Era início da noite quando descemos do nosso resistente veículo, em Pedrógão, e as perspetivas eram as de retornar para uma noite gelada a bordo. Esfomeados, entrámos no que parecia ser o único estabelecimento aberto àquela hora – uma pastelaria. Sem ninguém nas ruas, fizeram-se duas horas de exploração sem que vivalma tivesse a bondade de nos acolher, até que no Café Lido, no limite da nossa esperança, o proprietário solidarizou-se com a brancura dos nossos dedos, dando-nos dois quartos.

Com uma noite bem dormida, levantávamo-nos, sem o sabermos, para um dia intenso e bem contrastante no cenário geral da viagem. Estávamos em Pedrógão, notava-se o negro manto em que a terra se tinha envolvido, era percetível que o incêndio do ano passado ainda pesava nas preocupações do dia-a-dia das gentes com quem nos cruzámos, pelo que decidimos retribuir, na medida do possível, a hospitalidade e a afabilidade com que fomos recebidos. Para isso, lançámos o repto nas redes sociais, pedindo que nos fizessem chegar mensagens que se adequassem, com a promessa de as entregarmos a alguém que houvesse sofrido com o acontecimento. Foi o que fizemos.

Soubemos que, à saída do concelho, a freguesia de Vila Facaia fora a mais castigada pelo fogo e foi para lá que quisemos ir, na busca de quem pudesse ser o oportuno recetor do que transportávamos.

Mensagens entregues em Pedrógão
Mensagens entregues em Pedrógão Mensagens entregues em Pedrógão créditos: Casa em Todo o Lado

Sem ter a mínima ideia de como procurar e, principalmente, de como abordar as pessoas sobre um assunto tão delicado, optámos por entrar no café junto à igreja. Lá dentro pedimos o café e o pastel de nata, num ensaio que nos pudesse dar alguma luz de como puxar o tema. No meio de tanta cerimónia, acabámos por ser concisos e diretos com a dona do espaço, e a conversa desenrolou-se até que percebemos que ela mesmo se incluía no rol dos infortunados.

Podemos dizer-vos que foi muito intenso o que ali se passou – um ano e meio depois, ainda há muita revolta com o que aconteceu e isso foi visível. Conversa finda, mensagens entregues, cinco minutos em que quase não falámos, e já era noite sem estarmos em Góis.

Deixámos Pedrógão com a intenção clara de seguirmos para a terra das motos, mas a meio do percurso brotou, através de uma chamada, a oportunidade de irmos até Coimbra participar num programa da rádio da universidade, na manhã seguinte. Ora, sabendo que a cidade dos estudantes significaria um desvio na nossa rota, encostámos o veículo para reunir numa espécie de cimeira improvisada – foi precisa uma hora para que houvesse fumo branco, mas o desvio acabou por ser a solução.

Em Coimbra, estando fora do nosso itinerário, não se repetiu a rotina de pedir casa, embora não tenhamos sido abrigados com menos calor. Com o enorme amigo da boémia, Zé Paulo, a noite foi curta mas animada e as baterias carregaram-se para o dia seguinte.

Entrevista em Coimbra
Entrevista em Coimbra Entrevista em Coimbra créditos: Casa em Todo o Lado

O sol nasceu, e às onze horas estávamos prontos para começar a conversa na RUC (Rádio Universidade de Coimbra). Foi uma hora agradável de direto que até nos fez crer que já nos poderíamos habituar ao andamento, no entanto, ao seu cabo, recomendava-se celeridade nos movimentos. Em passo de chita percorremos a cidade e, a meio da tarde, lançámo-nos para Góis, onde a aventura havia sido interrompida.

Íamos cheios de confiança. Acreditávamos piamente que era certa a dormida no Moto Clube de Góis, pois, com tanta fama e de tão grande que era, não haveria forma de nos dizerem que não, mas para princípio do nosso desalento, estava fechado. Para a edificação da pirâmide do desalento - com enfeites e tudo -, o presidente ia para Lisboa, o clube não tem camaratas, e os bombeiros rejeitaram-nos: o cenário ideal. Eram já nove e meia, quando a ajuda surgiu.

Góis
Góis Góis créditos: Casa em Todo o Lado

O nosso último reduto foi, de facto, a nossa salvação. Dirigimo-nos a uma residência de estudantes menores, por indicação dos bombeiros, e então conhecemos a sra. Lúcia, que nos fez acreditar na bondade. Com a desconfiança lógica e natural de ver três indivíduos chegar à porta de uma instituição de que é responsável, já de noite, seria também expectável que não nos deixasse sequer explicar, mas ouviu-nos. Coincidência feliz foi a de ser filha da ‘Vó Mila, que tem uma unidade de alojamento local em com o mesmo nome, em Várzea Pequena, logo ao lado, e de ter decidido incomodar a senhora, à hora do sono. Acreditem ou não, até uma panela de sopa a sra. Lúcia nos trouxe, mais tarde.

No conforto de uma casa muito acolhedora, a noite foi extraordinária.

Vó Mila
Vó Mila Vista da Casa da Vó Mila créditos: Casa em Todo o Lado

Visitámos Góis depois de acordar – que foi uma adorável surpresa – e, às cinco horas, arrancámos para Viseu. A caminho, um convite desviante: recebemos uma mensagem que sugeria Penacova e um cantinho, que obrigava paragem, com o nome de Jó das Bifanas. As indicações foram cumpridas escrupulosamente, o nosso plano é que não.

O que começou por ser «eram três cafés e um pastel, por favor», acabou numa conta generosa de imperiais, depois de uma mudança de ideias provocada, unicamente, pelo próprio Jó - ele é a personagem que todos conhecem em Penacova e que todos deveríamos conhecer só para a vida ser mais feliz. Terminámos a festa e fomos jantar, a convite, com ele e os seus amigos, no local onde, por coincidência, estava a Rita que nos tinha proposto passar pela sua terra.

A noite mais aleatória aconteceu em Penacova, onde ainda conseguimos dormida através de mais um convite da Rita que, para além de hospitaleira, ainda tem a alma mais empreendedora do Centro.

Com direito ainda a pequeno-almoço, saímos de casa da nossa anfitriã e fomos correr os recantos maravilhosos da vila. Foi já ao final da tarde que retomámos o sentido de Viseu, para o início da reta final que iria ser marcada pela chuva.

Viseu valeu pela amabilidade do Rodrigo em nos ter convidado a dormir em sua casa e pela sorte absurda de chegarmos no dia em recebia a mobília necessária para nos dar algo mais do que chão, porque da cidade em si, infelizmente, conhecemos muito pouco.

Seguia-se a etapa que marcava o cumprir do caminho, dos catorze dias sem casa, desta aventura a três: a chegada a Chaves.

Texto: Casa em Todo o Lado

Pode acompanhar as crónicas desta aventura no SAPO Viagens. Siga também no Instagram, no Facebook e no YouTube.