A primeira vez que olhamos para a aldeia (assim que chegamos após subirmos uma estrada estreita e sinuosa) é um daqueles momentos que ficam na memória. Mal saímos do carro, conseguimos ver a aldeia num todo. Vemos as poucas casas de xisto que a compõem distribuídas como que numa fila que vai descendo (ou subindo) o vale. Na verdade, as casas em conjunto parecem formar uma escada gigante que aos poucos começa a ser engolida pela natureza. Na memória, gravamos esta imagem que podia estar pintada num quadro ou ser cenário de um encantador filme de fantasia.
A imaginação começa a funcionar antes mesmo de entrarmos na aldeia que é lar do projeto Cerdeira – Home for Creativity, que, mais do que uma unidade de turismo, procura ser uma “comunidade de artes”. É por isso que, para além do alojamento, o projeto criou uma Escola de Artes e Ofícios, onde são realizados workshops e oficinas para adultos e crianças.
O projeto surgiu da paixão que uma escultora alemã, Kerstin Thomas, começou a nutrir pela aldeia a partir do momento que a descobriu. Na altura, há cerca de 30 anos, Kerstin estudava em Coimbra. A aldeia encontrava-se abandonada e sem habitantes há uma década. Ainda assim, Kerstin decidiu instalar lá o seu ateliê. Em conjunto com o marido, Bernard Langer, começou a recuperar algumas casas. Em 2000, dois amigos de Coimbra, Natália e José Serra, juntaram-se ao casal. Aos poucos, a aldeia começou a renascer e a ganhar nova vida, transformando-se na Home for Creativity que serviu de nosso escritório por um dia.
Bem-vindos à Casa da Azeitona
Na Cerdeira não temos rede no telemóvel - há quem tenha, depende do operador – mas temos internet, o que nos permite, se necessário, utilizar o Whatsapp ou outro serviço semelhante para efetuar chamadas.
O nosso escritório ficou “montado” na Casa da Azeitona que acomoda até seis pessoas, sendo uma ótima opção para famílias embora também sirva para amigos, até porque tem duas entradas: uma no piso no térreo e outra no superior.
A casa não dispõe de televisão, aliás, nenhuma das casas da Cerdeira dispõe. Sem televisão, rede no telefone, ficamos com o que importa: internet para trabalhar e tempo, algo que costumamos sentir faltar na vida agitada da cidade.
Há vantagens em trabalhar no centro da cidade, mas é difícil tirar proveito. É por causa da falta de tempo que acabamos por não conseguir tratar das burocracias que queríamos à hora do almoço, tal como ir ao ginásio ou pôr a conversa em dia com os amigos que trabalham ali perto. No fundo, temos a ideia de que trabalhar no centro da cidade ajuda-nos a otimizar melhor o tempo, contudo, nem sempre é assim.
Com a pandemia começamos a trabalhar mais a partir de casa, uns pela primeira vez, uns mais vezes ou mais tempo, outros de forma permanente. A experiência pode ter levado muitas pessoas a sentir que, afinal, não precisam assim tanto de trabalhar no centro da cidade. E um dia de trabalho na Cerdeira reforça essa ideia.
Afinal, menos é mais
Diz-nos Catarina Serra, uma das responsáveis pelo projeto da Cerdeira e filha do casal amigo de Kerstin, que talvez esta pequena localidade nunca tenha tido mais de 70 pessoas. Segundo a lenda que cresceu a ouvir, – Catarina ainda se lembra de percorrer a aldeia com quatro anos – “Cerdeira foi feita por quem gostava de viver isolado, longe de multidões”.
A verdade é que até não nos sentimos muito isolados na aldeia, por causa da internet, contudo, sentimo-nos longe de tudo, pelo menos daquilo que mais nos distrai no dia-a-dia.
Ao longo do dia e meio que estivemos na Cerdeira, continuamos a par do que se estava a passar no mundo, porém, acompanhamos com um certo distanciamento, como se estivéssemos a observar o mundo a partir do paraíso. Ao nosso redor, e também enquanto trabalhávamos, existia um silêncio tranquilizador que só era interrompido oportunamente por sons da natureza como da linha de água que corre junto à aldeia ou do canto dos pássaros.
Também não sentimos monotonia pois, surpreendentemente, parece existir sempre algo a acontecer. Talvez até seja porque o telemóvel não apita com mensagens ou porque não temos de estar sempre a verificar se vem algum carro sob pena de sermos atropelados. Se calhar só estamos mais atentos aos pormenores daquilo que nos rodeia e disponíveis para acolher novas sensações.
Como chegamos à aldeia a hora do almoço, aproveitamos a tarde para descobrir algumas das aldeias vizinhas. Visitamos a do Talasnal, que é mais turística e a do Chiqueiro, que é a aldeia de xisto mais pequena de entre as sete da Serra da Lousã.
A caminho da Cerdeira, paramos num miradouro que tem uma moldura a dizer “Isto é Lousã” e que faz parte do projeto com o mesmo nome criado para dar mais visibilidade à serra. Mais à frente, um pastor a conduzir um rebanho de cabras, algo cada vez menos comum de se ver. Imediatamente a seguir paramos o carro para confirmar se o vulto que vimos a correr entre as árvores era mesmo um javali bebé. Confere. Vemo-lo a atravessar a estrada depressa com a mãe. Seguem caminho e nós também.
De volta a aldeia, ainda há tempo para descansar ou trabalhar antes da hora do jantar. Lá fora está silêncio. Trabalhamos um pouco, mas antes vamos à fonte encher o cântaro que a Cerdeira nos deixou em Casa. Bebemos água fresquinha da fonte como antigamente. Jantamos.
Depois só nos queremos deitar para aproveitar o silêncio e ouvir os sons da brama dos veados. Há quem visite a Serra da Lousã com o propósito de testemunhar este acontecimento, por isso, não podíamos deixar de apreciar nem que fosse só através da escuta. Não podia haver melhor embalo naquela noite chuvosa.
Aliar trabalho ao lazer só nos enriquece
Começamos o dia cedo e com um pequeno-almoço no Café da Videira. Sentamo-nos junto à janela e apreciamos a vista. Para além de observarmos o fim da estrada e o começo da aldeia, vemos um grupo de veados junto a uma encosta.
Como não chovia, descemos a Cerdeira para nos aventurarmos num trilho até à aldeia do Candal.
Começamos por apreciar o riacho que se encontra no final da aldeia da Cerdeira. Depois atravessamos a ponte coberta de musgo com vontade de descobrir o que vem a seguir. Seguimos por um caminho com o piso irregular e escorregadio devido à chuva que havia caído, e começamos a subir a montanha.
Já em cima, observamos a Cerdeira e que bela fotografia gravamos na nossa memória. Seguimos em frente, estamos no alto e a sensação é incrível. A aventura continua e embora o percurso seja curto, três quilómetros, subir cansa. Ainda assim a paisagem e a experiência compensam. E mal sabíamos que o melhor estava para vir: um miradouro com vista para a aldeia do Candal. Que belo cartão de boas-vindas! Apreciamos o conjunto formado pelas casas de xisto que se encontram aninhadas à encosta. Em baixo, à entrada da aldeia, aguarda-nos o motorista, mas a vontade é de regressar à pé, porque afinal o caminho faz-se bem.
De volta a aldeia, tomamos um banho e estamos com a disposição certa para trabalhar. Rapidamente, chega a hora do almoço. Na aldeia não existem restaurantes, assim o melhor é vir preparado para cozinhar – faz de conta que está em casa. Também existem petiscos e refeições ligeiras no Café Videira. É possível também reservar jantar através do serviço mesa posta, pensado especialmente para quem chega tarde à aldeia. Mediante reserva, a unidade prepara e leva o jantar até nossa casa.
Existe também na aldeia uma loja pequena com alguns produtos não perecíveis como massas, arroz, polpa de tomate e conservas, mas, o melhor, é mesmo já ir abastecido. “Neste momento, não faz sentido para nós ter uma mercearia. Não conseguimos garantir que escoamos” os produtos, explica-nos Catarina Serra.
Também podemos aproveitar para comer nas redondezas como no famoso restaurante Ti Lena, na aldeia Talasnal.
Depois de almoço há duas hipóteses: continuar a trabalhar ou aprender algo novo. Como a nossa estadia é curta, optamos por participar num workshop para aprender a fazer casas de xisto em miniatura e mais do que aprender a arte, acabamos por ficar a conhecer melhor o passado daquela aldeia e a valorizar mais os seus primeiros habitantes.
Uma (mini) casa de xisto em duas horas
Primeiro temos de ir buscar a matéria-prima. Para tal só precisamos de um balde e andar pela aldeia. Para construir a casa, vamos precisar de pedras pequenas de xisto e de duas maiores: uma para servir de base e outra para as costas da mini-casa.
Reunidas as pedras, é hora de pôr as mãos no barro. É nesta parte que aprendemos mais sobre a construção das casas de xisto e entendemos melhor a razão de cada qual ser tão única, apesar de todas terem características semelhantes.
O SAPO Viagens visitou a Cerdeira a convite do Turismo do Centro
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