“Eu vou a caminho, vou…”: Saímos da cidade com o “Hipocampo” de Lena d’Água a tocar no rádio. Parecia um hino à nossa fuga até a aldeia de São Brás do Regedouro. Quer seja um trocadilho de quem “vai para o campo” ou um hino às memórias, parece um bom presságio para esta viagem.

“Vou a caminho, vou. Sigo o instinto...”, continuava Lena d’Água, mas nós seguimos o GPS que marcava uma hora e quarenta e cinco minutos de Lisboa até ao destino final. O outono brilhava entre as nuvens esbranquiçadas a tingir o azul do céu. Mal saímos da autoestrada convergimos com a N114 e foi como se nos tivessem aberto uma cortina e o Alentejo entrou-nos pelo para-brisas adentro. “Fizeram boa viagem?”, perguntou-nos Ana, natural da aldeia e colaboradora do alojamento nas épocas baixas. As boas-vindas são dadas na antiga casa da Dona Francisca, um espaço com oito metros quadrados, que agora é a receção do alojamento.

Logo se apressou a mostrar-nos o mapa da aldeia onde podemos encontrar os pontos de interesse para quem a visita: duas cabanas pequenas que servem hoje de museus com a história da aldeia; a igreja que ainda está de pé, mas nem sempre aberta; o parque infantil; o café/mercearia do pai da Ana; o forno a lenha, utilizado outrora pela mercearia para as fornadas de pão; as casas originárias da aldeia, as quinze casas do alojamento e o restaurante "O Regedouro", onde era antigamente uma queijaria. A explicação do mapa foi interrompida pelo badalo do sino da igreja que insiste em tocar de meia em meia hora. Não vá o sossego atrasar-nos a noção do tempo.

“Precisava de ter a aldeia do meu lado”

Vítor Ribeiro foi o homem que sonhou e fez a obra nascer. É natural de Tomar, vive há muitos anos em Cascais e trabalha no ramo da construção desde sempre, herdou o gosto e o negócio do pai. “Estava de férias quando me ligou um primo a dizer que aqui em São Brás existiam umas casas à venda e que dariam para recuperar”, começa por contar.  Na viagem de regresso das férias no Algarve, juntamente com os três filhos – Margarida, Carlos e Ricardo –, parou na aldeia e viu as casas.

Vítor percebeu que havia ali potencial e apesar de nunca ter estado ligado à área do turismo foi nessa área de negócio que pensou. “Quando contactei a Câmara disseram-me que projeto era interessante, mas que precisava de ter a aldeia do meu lado. Eu comecei a vir aqui ao centro desportivo, sentei-me com eles, fui conversando e foi aí que tudo começou. As pessoas começaram a perceber que eu não era um forasteiro que vinha revolucionar isto tudo. Acabei por comprar casa e comecei a viver aqui”, recorda. E com Vítor vieram também dois filhos que quiseram acompanhar o projeto e mudar de estilo de vida. A hospitalidade das pessoas da aldeia encantou, desde sempre, o empresário. “Já me aconteceu estar em casa e ir lá alguém levar-me uma feijoada, por exemplo. As pessoas são muito afáveis”, realça.

Vitor Ribeiro
Vitor Ribeiro Vitor Ribeiro

Foram necessários três anos para erguer o projeto e foi, então, em 2020 que Vítor e filhos inauguraram o alojamento “São Brás do Regedouro – Turismo na Aldeia” com quinze casas completamente renovadas.

A família procurou que este projeto fosse um turismo rural requintado. Existe um pormenor especial nestas casas: todas as casas têm os nomes dos antigos moradores. O SAPO Viagens ficou na “Casa do Vitoriano”, um senhor que ainda se mantém na aldeia, com nova morada e com a sua grande horta mesmo junto à piscina do alojamento turístico. Esta era a casa mais concorrida, uma vez que era a única com telefone.

Piscina do alojamento
Piscina do alojamento Piscina do alojamento com a horta do senhor Vitoriano por trás

Mas quem visitar a aldeia também pode ficar hospedado, entre outras, na “Casa do Galinhola”, conhecido como o aldeão mais extrovertido da aldeia; “Casa da Joana”, que antigamente guardava a sua burra onde hoje é o WC da suite, na “Casa da Custódia”, “Casa do Plínio” ou na “Casa do Posto Médico”, onde antigamente havia de quinze em quinze dias consultas médicas. E desta forma as pessoas mantém-se vivas também nas paredes que as viram nascer.

A decoração é igual em todas as casas: as bancadas da cozinha e casas de banho são de madeira de castanho; o pavimento, altamente térmico, a imitar a mármore e os pormenores de pedra deixados da antiga estrutura, contribui para a rusticidade das casas e respeito pelo meio envolvente. A sofisticação do projeto está também nas peças únicas pedidas por Vítor exclusivamente para as casas, como os charriots de ferro e pedra com a forma de figura humana. Mas um dos elementos de decoração mais impressionante está na “Casa do Forno”, onde pode estar sentado no sofá e ver o antigo forno da casa, mantido como peça museológica dentro de uma pequena vitrina.

Quem aqui fica hospedado também pode usufruir de uma série de atividades, mediante reserva, tais como: piqueniques ao pôr-do-sol, degustação de vinhos, passeios de bicicleta, workshops de pão ou massagens.

A maioria das casas partilham o mesmo pátio onde ainda sobrevivem antigos poços – hoje restaurados e inativos – e onde se pode aproveitar as sombras dos limoeiros e oliveiras. É por aqui que encontramos Sónia, uma colaboradora do alojamento e também habitante da aldeia, a varrer as folhas outonais que não dão tréguas. “Vi o artigo com a oferta de emprego, concorri e voltei à aldeia”, conta.

A sua história é curiosa: Sónia construiu casa em São Brás do Regedouro há muitos anos, ainda antes de casar, mas a vida levou-a para outras paragens. Sem já nada prever, a aldeia voltou a ser a sua morada. “A aldeia estava perdida no tempo e renasceu. No verão teve muita afluência. Ouvem-se crianças e animais de estimação”, comenta. Sónia é responsável pela limpeza dos espaços exteriores e também das casas, juntamente com Maria e Leopoldina (também aldeãs).

Sónia, colaboradora do alojamento turístico
Sónia, colaboradora do alojamento turístico Sónia Correia, colaboradora do alojamento turístico

“Veio trazer nova alma à aldeia”

E se Sónia voltou há pouco tempo à aldeia, em junho, Maria nunca dali saiu. Nasceu num monte nos arredores, Monte da Bala, e todas as suas memórias da mocidade e da vida adulta são na aldeia. Maria vive no epicentro de São Brás, é das primeiras casas que avistamos e os tratores do marido no pátio não passam despercebidos. Cruzámo-nos quando nos foi deixar o pequeno-almoço à porta, literalmente. Aqui o pequeno-almoço serve-se numa cesta de verga e é deixado à porta para comodidade dos hóspedes. Leite, sumo, cereais, fruta, pão, croissants, queijo e compotas são alguns dos ingredientes que compunham o nosso pequeno-almoço.

pequeno almoço são brás do regedouro
pequeno almoço são brás do regedouro Pequeno-almoço São Brás do Regedouro - Turismo na aldeia

Mas o pequeno-almoço pode esperar, Maria é que não. Tem a manhã atarefada, mas ainda assim parou à porta do pátio para falar connosco. Foi na aldeia que andou à escola, que conheceu o marido nos bailes e que casou. “Foi nesta igreja”, diz orgulhosa apontando para o edifício em frente da sua casa que hoje só abre de quinze em quinze dias para a missa. “Também batizei os meus filhos aqui”, acrescenta.

Sobre o turismo na aldeia, projeto que viu crescer de perto, ao início estava cética. “Achei que não dava nada, sou sincera. As casas estavam todas a cair e achei que não viesse para cá ninguém”, recorda. Mas Maria estava enganada e hoje afirma que o projeto “veio trazer nova alma à aldeia”. É uma fã incondicional e recebe todos com um sorriso. “O ambiente mudou, há mais gente! Há logo outro ânimo só de ver além tanto carro parado”, conta enquanto aponta para o local destinado para os hóspedes parquearem.

Maria , colaboradora e habitante da aldeia
Maria , colaboradora e habitante da aldeia Maria de Fátima , colaboradora e habitante da aldeia

Depois de conversarmos com Maria, parámos no único café da aldeia, o Café Marques. Mal afastamos as ripas de tecido, damos de caras com José, mais conhecido por Zé. Herdou o negócio do pai e do avô a quem o estabelecimento deve o nome há cerca de 80 anos. O café abre às 7h da manhã, de segunda a sábado, e fecha às 21h. “Antigamente era até à meia-noite”, conta. O movimento na aldeia é muito menor comparado aos seus tempos de mocidade, mas ainda assim diz que no verão “tem mexido mais”. “Quando andava aqui na escola primária, da primeira à quarta classe, éramos quase trinta”, recorda. A maioria dos seus colegas e amigos saíram da aldeia quando jovens, mas Zé já tinha o seu destino traçado. “Ainda tive umas propostas quando acabei de estudar, para ser empregado bancário, mas não queria estar preso. Ainda fiquei mais preso”, ri-se. Refere-se ao balcão onde se apoia há mais de quarenta anos. A conversa foi interrompida por um cliente que se levantara cedo para ir à caça, mas sem sorte. “Então foste aos tordos?”, pergunta Zé. “Não há, está frio!”, conclui o homem de camuflado.

Saímos e continuámos a caminhada, curta, pela aldeia que alberga hoje cerca de 70 habitantes. Aproveitámos para entrar nas Cabanas da Memória, pequenas casas que serviam de apoio à agricultura, e onde hoje podemos ler sobre a região. Por aqui, outrora, passavam estradas romanas, importantíssimas na administração do império. E o caminho da "Canada Real" – que ligava Lisboa a Beja – ainda por aqui passa, sendo a aldeia um ponto de paragem para peregrinos e romeiros que vêm da Moita até ao santuário de Nossa Sra. D’Aires em Viana do Alentejo.

“O Regedouro”: o toque de requinte que faltava

Com o cair da noite, além do frio, também a fome apertou e fomos por isso conhecer o projeto recém-nascido da aldeia: o restaurante “O Regedouro”.

Em julho, como forma de complementar a oferta do alojamento, o restaurante abriu ao público em sistema de pré-reservas. A funcionar numa antiga queijaria, encerrada há cerca de quinze anos, o restaurante tem uma área ampla, de “mais de dez mil metros quadrados de construção”, explica Vítor.

O edifício possui duas salas multiusos, completamente equipadas e preparadas para eventos privados, e o restaurante. A imagem de "O Regedouro" é o tronco de uma oliveira milenar que podemos encontrar no exterior do pátio.

Quando entramos no restaurante, as planícies alentejanas saltam-nos à vista através das duas grandes janelas. Em tons verdes, com capacidade para cerca de 50 pessoas, “O Regedouro” promete requinte nos sabores regionais. Fomos recebidos pelos grandes olhos azuis e sorriso tímido da Inês. Tem 19 anos e é das mais jovens habitantes da aldeia. “Isto trouxe mais pessoas a ver a aldeia e a conhecê-la, porque ninguém se interessava”, diz. Inês estuda em Évora e está a trabalhar no restaurante em part-time.

Inês, colaboradora do restaurante e habitante da aldeia
Inês, colaboradora do restaurante e habitante da aldeia Inês Zambujinho, colaboradora do restaurante e habitante da aldeia

Conduz-nos à mesa e logo Sandra Encarnado, chef do espaço, sai da cozinha para nos cumprimentar. O sotaque não engana: Sandra é natural do Alentejo, mais propriamente de uma pequena aldeia, Vila Nova da Baronia, no Baixo Alentejo. “Tive a sorte de ter uma avó que gostava muito de cozinhar, a avó Isabel, e eu ficava muitas vezes nas férias com ela. Foi ela que ensinou a apanhar as ervas no campo como as catacus ou os cardos”, recorda. São estas e outras memórias de infância que fomentaram a paixão da chef pela cozinha.

Sandra Encarnado, chef de cozinha do Restaurante "O Regedouro"
Sandra Encarnado, chef de cozinha do Restaurante "O Regedouro" Sandra Encarnado, chef de cozinha do Restaurante "O Regedouro"

O primeiro projeto de Sandra relacionado com a gastronomia foi numa vertente mais comercial: abriu em Évora uma loja de produtos regionais, mas mais tarde começou a fazer pequenos pratos. “Era uma cozinha aberta, a cozinhar para toda a gente, estudei muito e aprendi muito”, conta. Além do amor e paixão pelos ingredientes e sua confeção, Sandra sempre procurou aprender mais, quer através de workshops, quer pela partilha com outros cozinheiros e chefs.

Foi em São Brás do Regedouro que encontrou abertura para criar a sua cozinha e, apesar de ainda estar a dar os primeiros passos, garante: “Aqui consigo pôr muito daquilo que sou."

Antes de começarmos a nossa degustação há que alertar que a escolha dos produtos é da inteira responsabilidade de Sandra que procura trazer para a mesa todo o “seu” Alentejo: o vinho sugerido é de Redondo, o queijo de Oriola, o azeite de uma pequena produção biológica de Vila Nova da Baronia, os legumes da horta de São Brás e por aí a fora.

Começando pelas entradas, o menu oferece: Choquinhos com maionese aioli, croquetes de alheira e cebola, queijo de cabra no forno com mel e lavanda, tempura de legumes, pica-pau de porco e pickles e ainda no couvert provámos uma manteiga de farinheira que ansiámos que ficasse disponível para comercialização. “Era um dos nossos objetivos ter aqui uma pequena mercearia com produtos que as pessoas provassem e quisessem levar”, conta Sandra.

As últimas estações do ano convidam a uma sopa quente e, por isso, não faltam no menu a sopa de cação, sopa de feijão e mogango e a típica Açorda de Bacalhau.

Para pratos principais o menu propõe javali em vinho tinto, bacalhau, suas miudezas e leguminosas, mas a chef destaca o cação frito com amêijoas (uma réplica muito curiosa da carne de porco à alentejana) e a presa de porco alentejano fumado com gratin de batata. “O nosso fornecedor de carne é espetacular. A presa é a parte mais nobre do porco, é fumada 72 horas e depois vai ao sous-vide para regenerar e é um prato com muita qualidade”, partilha.

A sustentabilidade é um dos valores de Sandra, que está desde sempre habituada a aproveitar o que a terra lhe dá. “Eu trabalho muito com produtos da época e dá-me muito gozo sair daqui [restaurante], ir ali à horta apanhar algo e vir trabalhar esse produto”, conta-nos a propósito da salada de época que estava a fazer com as abóboras e romãs da horta.

Não nos pudemos despedir de “O Regedouro” sem antes conhecer uma das sobremesas mais tradicionais: a sericaia alentejana com ameixa d’Elvas, mas quem for ao restaurante poderá também provar a Panacotta de Chocolate Branco e o Bolo de Requeijão com Lúcia-Lima.

O restaurante está aberto de quarta-feira a sexta para jantares, sábado para almoços e jantares e domingo apenas para almoço.

Foi de alma cheia que saímos da aldeia com vontade de regressar. Não deixámos o parque de estacionamento, que Maria tanto gosta de ver cheio, sem antes sermos cumprimentados pelo sino da igreja que não se esquece de quem vive na aldeia, e de lhe marcar o tempo. E se na partida, Lena D’Água dizia que havia tanto campo nela, desta visita, também ficou muito campo em nós.

O SAPO Viagens viajou a convite do alojamento